segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A Vingança de Noel



Durante onze meses suportava, resignado, as pedras na vidraça, os xingamentos, as cruéis e pueris provocações dos filhos de seus vizinhos. Dava o troco no último mês do ano quando, travestido de velhinho bom, prometia presentes que - sabia - eles jamais ganhariam.

Carlos Cruz - 12/12/2007

Adrenalina, Porcos, Vacas, Tropa de Elite e Baixo Salário



"Quem diria... O André, mocorongo do jeito que é, virou polícia..." O comentário, feito por meu genitor quando soube de meu ingresso na gloriosa PCERJ, deixou-me um tanto frustrado. Afinal, sei que sempre fui um poço de paciência e insuportavelmente calmo, mas mocorongo? Não encontrei o termo no Aurélio. Procurei na Rede. Segundo a definição do dicionário informal, mocorongo significa idiota, tolo, burro, estranho, esquisito, diferente e está relacionado às palavras mané, bocó, trouxa, otário, besta, estranho, esquisito, diferente. Em suma, mocorongo é um adjetivo quase insultuoso. Mas sei que meu pai não teve a intenção de me insultar. Referia-se a meu jeito "devagar" de ser.
Todavia, meu objetivo, ao empreender essa tentativa de escrever uma crônica, nada tem de filológico, etimológico ou morfológico. Quero vencer minha resistência em falar sobre minha profissão. Sempre evitei falar no assunto. Escrever então, nem pensar. Talvez devido a um "recalque" arraigado em meu cérebro, proveniente das leituras acerca dos desmandos da ditadura militar, SNI, DOI-CODI, AI-5 e o escambau; talvez por excesso de punk rock; talvez por não aceitar haver sido vencido pelo sistema, a ponto de fazer parte dele em detrimento de minhas pretensões poético-musicais-artísticas da adolescência. Talvez. O fato é que decidi regurgitar minha opinião, por mais exdrúxula e estapafúrdia que ela seja, animado pela repercussão positiva do sangrento filme Tropa de Elite. Por mais violenta que seja, a saga do Capitão Nascimento e seus comandados desencadeou uma onda de simpatia dos cidadãos pela Polícia. De repente, o policial que antes era taxado de corrupto, truculento, perverso, tornou-se o paladino da Justiça, o defensor dos fracos e oprimidos, pronto para dar sua vida, mesmo recebendo um salário de fome no final do mês, na guerra contra os cruéis e impiedosos traficantes, os vagabundos sem alma. Tenho de confessar que fiquei arrepiado ao final do filme. Ouvi muitas histórias de colegas que foram barbaramente torturados e queimados vivos no tal "microondas".
Não me envergonho de dizer: estou na Polícia Civil por acaso. Trabalhei durante muitos anos na Rede Ferroviária Federal, feliz e satisfeito em minha função de artífice metalúrgico. É. Eu era um "peão", como costumam chamar aqueles que trabalham "na graxa". Só que sobreveio o governo Collor e com ele as privatizações das estatais. Alguns anos e centenas de funcionários demitidos depois, percebi que minha vez estava chegando. Tomei uma decisão: faria algum concurso público. Tinha família para sustentar, não podia ficar à deriva, à mercê das cotenções de despesas para agradar os acionistas. Comprei a Folha Dirigida e tava lá: concurso para inspetor de polícia. "Polícia?" - pensei. "Polícia não dá. Isso vai contra minhas convicções anarco-comunistas." Lembrei das leituras, das torturas, da repressão, da fase punk, do 'Fuck the Police'. Mas, daí, lembrei de meu filho que ia completar um ano de idade e precisava de leite e fraldas, precisava do papai para prover o sustento pois mamãe não trabalhava. Foi mais forte. Muito mais. Meus arroubos anarco-punk-ideológicos foram sobrepujados por aquele pequenino. Fiz o concurso, passei, entrei na instituição, acautelei arma e distintivo. Optei por trabalhar no interior. Não tinha pique para subir favela no Rio, sempre odiei exercícios físicos e fumo demais.
Na primeira semana no plantão da delegacia, lavrei meu primeiro flagrante. Furto de porco. Isso mesmo. Furto de porco. Os meliantes (no policês) entraram no chiqueiro que ficava no quintal da casa do cara e, munidos de uma afiada faca de açougueiro, assassinaram e destrincharam o pobre e indefeso animal que o proprietário estava engordando para o Natal, transportando-o para casa num carrinho-de-mão. Como diz o aforismo, não existe crime perfeito. O deles não foi diferente: em virtude da escuridão noturna, não perceberam que o sangue do suíno havia deixado um rastro no chão que terminava na porta da residência deles. O lesado só teve o trabalho de seguir e chamar a PM. Os três foram presos e o porco fatiado apreendido e entregue ao dono. Segundo o colega plantonista, bastava eles alegarem motivo famélico que o Juiz soltá-los-ia. Furtaram para comer.
Com o tempo, comecei a gostar do que fazia. A cada vinte ou trinta ocorrências maçantes, do tipo furto de celular, briga de vizinhos, atropelamento de vaca, ameaça, aparecia uma interessante. Como aquele estupro. O elemento (policês, de novo) agarrou a moça num local escuro, lutaram, ela feriu o rosto em uma cerca de arame farpado, disse que tinha AIDS, mas não houve argumento que demovesse o cara: o estupro aconteceu. Investigações iniciadas, recebemos um informe - denúncia anônima - de que o estuprador vivia com o pai-de-santo X.. Eu e um colega fomos até lá e qual não foi nossa surpresa quando o religioso, ao inteirar-se da denúncia, fez cara de espanto e disse:
- Olha, eu não sei de nada não. Mas meu santo de cabeça, Dona Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, sabe. Peço que esperem. Vou incorporá-la e aí vocês conversam com ela.
Entramos no jogo. O pai-de-santo fez lá a mandinga dele e, até prova em contrário, incorporou a tal entidade. Ela, com aquele linguajar característico, disse que estava muito triste com o que estava acontecendo em sua casa. Seu filho tinha enveredado por um caminho torto. Ia nos ajudar. Escreveria um bilhete que deveria ser entregue às mãos de um cabeleireiro, cujo salão situava-se em outra cidade. Fomos até lá. O cabeleireiro, após ler o bilhete, desmunhecadamente apontou o criminoso. Prendêmo-lo. No trajeto para a DP, ainda na viatura, ele confessou que tinha fugido de um município vizinho, onde havia assassinado a mulher e a sogra.
A profissão tem seus momentos bons. A satisfação do lesado quando recuperamos e restituímos um bem subtraído. O alívio dos familiares quando resgatamos um seqüestrado. Isso dá um certo orgulho e me faz lembrar de outra situação, digamos, insólita: uma senhora idosa, bastante nervosa, entra na DP e diz que está sendo ameaçada por um homem, que telefonava a cobrar para sua casa e sabia tudo sobre ela e sua família. Mostra a conta e o número do celular. Sabia que se fosse conduzir a investigação pelos trâmites convencionais - redigir informação para o delegado acerca da necessidade de representação ao Juiz pela quebra de sigilo de dados referente à tal linha de telefone; elaboração, pela Autoridade Policial da representação; encaminhar a representação para o fórum; aguardar deferimento do MM. Juiz; remeter decisão para a operadora de telefonia; aguardar resposta da operadora - levaria meses. Decidi agir. Telefonei para o número. O cara atendeu.
- Alô.
- Bom dia, caro amigo. Meu nome é Asdrúbal, sou operador do setor de atendimento ao cliente das Lojas Ponto Frio e tenho a grata satisfação de lhe informar que você foi sorteado dentre milhares de candidatos para participar de nossa promoção "Semp-Toshiba, Ponto Frio e Você, Tudo a Ver". Você estará tendo a oportunidade de concorrer a um televisor Semp-Toshiba, modelo C-290, de vinte e nove polegadas, que será entregue em sua residência, sem despesa alguma, bastando que para isso responda a uma simples pergunta. - falei, sem respirar e sem dar tempo de o cara pensar. - Qual a melhor loja de eletro-eletrônicos do Brasil?
- Ponto Frio! - o cara mandou, na lata.
- Parabéns, caro amigo! Você acaba de se tornar o feliz proprietário de um televisor de vinte e nove polegadas Semp-Toshiba. Agora, preciso de seus dados para a entrega do aparelho.
- Mas eu não vou pagar nada não?
- Absolutamente. Todas as despesas são por conta do Ponto Frio. Qual seu nome e endereço?
O cara passou tudo: nome, endereço, telefone, RG, CPF, nome do pai, da mãe, número do sapato, cor preferida, time do coração... Esperou uma televisão, recebeu uma intimação. A senhora idosa não foi mais importunada e, é claro, ficou muito satisfeita com a eficiência da polícia. Passou a reclamar menos na hora de pagar seus impostos.
Embora tenha passado a apreciar meu trabalho, não sei por quanto tempo permanecerei. O problema é o salário. Baixo demais para a atividade desempenhada e o risco que ela envolve. Ademais, a vagabundagem não vai parar de atirar. Tiros de fuzil. Fazem um tremendo estrago. O mundo vai continuar sendo um mundo-cão cheio de gente que tem medo e gente que mete medo. Já cantava Raul: "Durango Kid só existe no gibi, e quem quiser que fique aqui, entrar pra história é com vocês." Fico com ele.

Carlos Cruz - 12/12/2007

sábado, 8 de dezembro de 2007

O Desafio do Abecedário Xifópago ou A Fabulosa Fábula da Cadeia Alimentar Onírica Sem Pontos na Disneylândia Zoológica Fantástica do Sapo Cururu



Ávida a víbora venenosa devora o sapo cáustico leitoso e a leptospirótica ratazanA

Balem incautas ovelhas inadvertidas cobiçadas por salivantes lobos na fazenda do semita CaleB

Canoros passeriformes esvoaçam na nuvem cinza de partículas poluentes acima da torre do gigantesco relógio que faz tic-taC

Dromedários digladiam com camelos porque os camelos faziam troça dos dromedários em razão de os dromedários possuirem apenas uma corcova deixando a pé os agentes legionários da MossaD

Esquilos fofos fazem pilhas de nozes castanhas e avelãs nos buracos dos pinheiros precavendo-se da escassez invernal na América do NortE

Falcões empreendem vôos rasantes em tocas de timões sem pumba saltitantes com voz estridente situadas na floresta florida que tem uma casa de madeira cujo mobiliário inclui um alaranjado pufF

Golfinhos Flíper produzem um barulho chato sôfregos por peixe morto fedorento nadando em festivo e besta zig-zaG

Hordas de esquimós deixam seus iglus em trenós tracionados por cães em desabalada fuga dos invasores egípcios comandados pelo deus Donald TotH

Iracundos pombos-correio grevistas arrulham impropérios e palavras de ordem exigindo melhores salários condições de trabalho tíquetes-refeição vales-transporte e planos de saúde para a família e para sI

Joaninhas macho tocam clarinete na banda das moscas varejudas antes de serem subjugados, imobilizados e sugados pela aranha caranguejuda fêmea oriunda das plagas orientais regidas pelo Xá da Pérsia cujas lágrimas profusas banham o cadáver mumificado de sua amada Mumtaz Mahal e erigem o TaJ

Kriptoníticos donuts arranham a laringe do patético Pateta sedento de amores e paixões tórridas ansioso por comer a ruminante e bela Clarabela a bordo da nave-mãe comandada pelo Capitão KirK

Lhamas alpinistas em litúrgica romaria escalam o Monte Aconcágua no pico do qual imolam-se em sacrifício aos deuses astecas liderados por Huitzlopochtli tendo à destra seu ajudante-de-ordens o Supremo Deus SoL

Macacos-prego arriscam-se em divertidas macaquices acrobáticas alheios a seu australopitecínio futuro e aos tigres-de-bengala que lambem os beiços, afiam os caninos e com os olhos torcem e derrubaM

Ninfas diminutas providas de asas zumbem zombeteiras zombando do Capitão Gancho engolido devorado e deglutido pelo Crocodilo verde gigante Tic Tac que saciado queda-se parado entrando em alfa e ficando zeN

Ornitorrincos pestanejam sua aparência bizarra enquanto botam ovos dão de mamar e fazem qüem-qüem sem ninguém para levá-los ao circo dos horrores a Patópolis a Teresópolis a Petrópolis ou ao observatório astronômicO

Pirilampos piscam-piscam as lanternas de suas bundas apesar das admoestações do Mago Mickey Merlim que vaticina o seu trágico fim no papo dos pardais impiedosos regados a mostarda e catchuP

Quiromantes elásticas prognosticam o fatídico embate entre a matilha de leões garbosos e a choldra de hienas malandras protagonizado por Simba o leãozinho marujo e o famigerado e traiçoeiro Ska Iscariotes nas pradarias da ilha de Madagascar resultando na vertiginosa queda da bolsa NasdaQ

Rinocerontes aplicam-se com disciplina extremada à dieta imposta pelos nutricionistas do Ibama degustando apenas uma folha de alface e uma rodela de tomate por dia malhando na esteira e na bicicleta ergométrica mordendo-se de inveja dos desprezíveis hipopótamos rosas de saias de bailarina que não param de rodar e rodar e engordaR

Sinfônicos albatrozes disputam ferozmente os acepipes gélidos com os pingüins de geladeira engravatados as focas que querem bola batendo palmas os leões leôncios e os elefantes mamutes marinhos no litoral iceberguiano do oceano glacial ártico donde todo final de ano o meliante Santa Klaus conhecido vulgarmente pelo cognome Papai Noel Filho da Puta Porco Capitalista açoita hediondos duendes verdes que embrulham alucinadamente com papéis coloridos milhares de aparelhos de MP3 notebooks e Playstations 5 para presentar os ricos e envelopam com papel jornal cartões baratos da Unicef acompanhados de cuspe para os filhos bastardos dos miseráveiS

Tamanduás-bandeira metem a nareba em formigueiros destruídos pelos irmãos Metralha que evadiram-se do local perseguidos pela carrocinha da SWAT

Uniformizados urubus-rei marcham contra a fortaleza inexpugnável onde abrigam-se os três porquinhos rosa com bacon e costelinha acebolada defendida por rapunzel a tirana flatulenta e sua obediente cobra surucucU

Volumosas lombrigas deflagram ataques fulminantes contra o império das tênias quilométricas que agarram-se de forma mordaz às paredes do intestino grosso com suas ventosas intensificando o apetite do cachorro Pluto que come e bebe e embriaga-se necessitando tratar-se terapeuticamente com várias cápsulas de EngoV

Whiskas alimenta os gatos que não gostam de Whiskas preferindo ratos passarinhos e contos porno-eróticos de WiskoW

Xilofones ressoam ante o advento da família incrível que banqueteia-se com frango assado ao som de Charlie Parker ao saX

Yankees disputam a pequena bola com Martin Luther King Pernalonga Tico Teco Ronaldinho Gaguinho e Patolino enquanto os megafones gritam os primeiros acordes de Lucy in the skY

Zarabatanas zunem no ouvido do rei Régis Rex O Estróina que joga xadrez envergando um belo e pavonesco manto xadreZ

Carlos Cruz – 02/12/2007

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Eterno Retorno



Ano 2536. Episcípedes, na segurança de sua casa-redoma feita de vidro ultra-resistente, observa a chuva ácida. A paisagem lá fora é desoladora: só negrume, só fumaça,só morte. Só. Episcípedes sentia-se aflitivamente só. Tomou outra dose de alcahol, outra cápsula de ilusionithium. Drogas permitidas pelo Estado. Controladas pelo Estado. Estado que controlava os cidadãos. Cidadãos que consumiam as drogas controladas pelo Estado para que não perdessem o controle de si. Episcípedes sentiu o formigamento nas mãos, o suave torpor, a leveza do corpo. As substâncias faziam efeito, cumpriam seu papel no organograma estatal. A paisagem lá fora transmutou-se. O árido tornou-se fértil. O negro tornou-se verde. O morto reviveu. Episcípedes viajou. Para dentro, para longe, para trás.

Ano 1210. Episcípedes era homem. Tinha a cabeça raspada em forma de halo, trajava uma túnica grossa de lã, amarrada por uma corda na cintura, e sandálias. A corda tinha três nós. Os nós tinham nomes. Pobreza, Obediência e Castidade. Ao seu redor, animais, muitos. Parecia que todos os animais da floresta tinham vindo lhe fazer companhia. Episcípedes estava feliz, muito feliz. O estrondo da trovoada fez os animais debandarem. Episcípedes correu atrás deles. Não queria que aquele momento pleno de felicidade terminasse. Chocou-se contra algo invisível. Uma barreira invisível. A chuva desabou. Episcípedes, desesperado, viu os animais contorcerem-se, dissolverem-se, transformarem-se em uma pasta de carne fumegante. A relva verde ardia sem fogo. Fumaça. Muita fumaça. O verde tornava-se negro. Episcípedes tateou a esmo a barreira invisível. Encontrou um botão. Premiu. Uma porta invisível abriu-se na parede invisível. Episcípedes transpôs. Saiu. Correu sob a chuva. Gotas ácidas penetrando sua carne. Agulhas de fogo líquido. Queimando. Súbito, seu corpo em brasas planou no ar. Levitou. Braços invisíveis arremessaram-no violentamente contra a madeira. O madeiro. Grossos pregos cravaram-se em suas mãos e pés. Cravos. Coroa de espinhos na cabeça. Estigmas. Gotas ácidas. Queimando. Derretendo. Martirizando o mártir. O homem humano. Super-humano. Não era Episcípedes. Não era Francisco. Era a massa. A massa de carne sem vida. Morto. Estava morto.

Ano 3023. Episcípedes era uma célula nervosa implantada em um chip. Um chip implantado em um andróide. Não sentia. Não pensava. Não amava. Era só uma célula. Só um chip. Só um andróide. Só. Sempre só. Operário na usina de reciclagem de lixo, encontrou, certa vez, uma gravura antiga dentro de um livro antigo: Uma cobra engolindo a própria cauda. Algo dentro de si reagiu. Talvez uma mitocôndria anarquista. Familiaridade. A gravura era familiar. Aquela vaga lembrança foi o foco inicial daquela que ficou conhecida como a "Revolução dos Humanóides". Milhões de andróides foram neutralizados. Episcípedes, crucificado na cruz de metal, exposto durante meses como um lembrete. Depois, desmembrado, esquartejado e, por fim, dissolvido em ácido. Era o fim de outro ciclo. Outros viriam. A cobra engoliria o próprio rabo. Sempre.

Carlos Cruz - 20/11/2007


Baseado na História



Farto das missivas repreensivas do pai, o jovem fidalgo reuniu os amigos e seguiu para as margens do rio, a fim de abastecer-se da tal erva-do-diabo. Os fumos miraculosos certamente o fariam esquecer a categórica advertência do monarca: "Se acaso não abandonares essa vida de desregramentos e licenciosidades, despojo-te do trono antes mesmo de nele assentares." O encontro com a tropa imperial, bando de desmancha-prazeres, emissários de novas reprimendas paternas, foi, para o infante, a gota d'água. Espada em riste, olhar fulminante, regurgitou sua fúria, rompeu os grilhões, soltou o grito de liberdade há muito sufocado na garganta:
- Independência ou morte!
Próximo a eles, o traficante, disfarçado de camponês andrajoso, esgueirava-se furtivamente, saindo de cena, de fininho.

Carlos Cruz - 17/10/2007

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Rubicundo e Nauseabundo II - A Missão



Rubicundo e Nauseabundo, após a bem-sucedida, ilustrativa e edificante incursão à igreja evangélica protestante, decidem testar as leis de Newton, revogá-las se possível. O experimento inicial consiste em tentar fazer com que seus corpos ocupem o mesmo lugar no espaço. Afastam-se um do outro, cada qual dez passos. A seguir, fazendo o percurso inverso, correm à toda, chocando-se violentamente. Repetem a experiência quatro vezes. Zonzos e bastante machucados, desistem.
- Caralho, fedorento, essa lei não dá pra transgredir.
- É certo, preeminente vermelhão. Todavia, a partir de nossa malfadada experimentação, cheguei a uma conclusão.
- Qual?
- O homem é um ser frágil e patético... E não possui alma.
- Mas, shit man, por que meandros tortuosos chegou a tão profunda ilação?
- Silogismo simples, caro amigo. As velhas premissas. Sócrates, Platão, Aristóteles. O empuxo de Arquimedes.
- Não compreendo. O que tudo isso tem a ver com nossas equimoses, entorses e fraturas?
- Segundo Isaac Newton, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, correto?
- Sim.
- Utilizamos nossos corpos a fim de comprovar a referida lei, o que sucedeu, está certo?
- Também está.
- Veja bem: considerando a grande velocidade que imprimimos em nossa corrida - o que pode ser constatado através dos vários ferimentos em nossos corpos - nossas almas, etéreas e imateriais, caso existissem realmente, deveriam ter-se projetado e fundido, o que não ocorreu.
- Brilhante, fétido colega. Contudo, convém lembrá-lo que a alma é invisível. O Grande Mahatma Gautama Buddha o disse.
- Sim, é verdade. Ele também disse que a alma é a quintessência da vida. Portanto, se vivos estamos, não possuímos alma, uma vez que, dada a intensidade do impacto sucedido há minutos atrás, elas decerto estariam amalgamadas, planando por aí.
- Por falar nisso, lembrei que está na hora de você espremer os furúnculos de minha bunda.
- Vira.
Furúnculos espremidos, pus segregado, primeira experiência encerrada, Rubicundo e Nauseabundo passaram para a fase seguinte: comprovar, por meio da análise científica, o preceito irrefutável que mantém os planetas em órbita e faz despencar a fruta madura na cabeça dos preguiçosos tosquenejantes: a lei da gravidade. Fuçaram lixeiras, à caça dos objetos essenciais à realização do ensaio. Êxito nos preparativos, conduziram o gato e o vira-latas até o ponto mais alto do viaduto, sobre a movimentada marginal, de onde podia-se contemplar toda a beleza cinza e quadrada da megalópole. Animais por sobre o muro, prontos para serem sacrificados em nome da ciência, eis que Nauseabundo fita os olhos do pequeno e negro felino. Lembra-se do gato, personagem de um desenho animado que assistira pela vitrine da loja de eletrodomésticos. Desiste da experiência. Prostra-se. Rubicundo olha-o de soslaio, cara de comiseração. Neste momento, questionando-se sobre ser ou não ser um niilista, ouve "a voz" esganiçada:
- Ei, catinguento!
Procura o autor do chamamento, olha em redor e derredor. Seu amigo Rubi fita o horizonte, em seu rosto uma introspectiva e meditabunda expressão.
- Ô morrinhento! Aqui embaixo!
O aturdimento deu lugar ao assombro que deu lugar ao êxtase. O gato falava, puxava papo. Primeiro, repreensão, depois exortação.
- Você e seu parceiro vermelho são dois imbecis! Enveredaram por um caminho que não leva a lugar algum. Filosofia, ciência, religião, astros, cabala, Newton, Buda, Arquimedes, Aristóteles, Nietzsche? Bah! Tudo balela para distrair pseudo sábios, religiosos de araque, hermeneutas metidos à besta, exegetas de merda, especuladores desonestos cobiçosos apaixonados pelo vil metal. Vocês têm que trabalhar pelo bem-estar social. Justiça. Liberté, igualité, fraternité. Combater o capital da capital. Destruir a mais-valia. Search and destroy. A burguesia fede. Hay que endurecerse pero sin perder la ternura. Proletários de todo mundo, uni-vos!
Dito isto, desembestou via pública afora, perseguido pelo vira-latas. Conseguiu despistá-lo. Nauseabundo viu quando o bichano mergulhou em uma lata de lixo e saiu, caminhando nas patas traseiras e calçando algo que pareciam botas de couro marrom. "Que estranho." - matutou - "O gato de botas, além de botas, tinha longa, espessa e encarapinhada barba. Como não percebi antes?"
Rubicundo prosseguia em sua contemplação, alheio a tudo. Sacudidelas, exposição da revelação de Gato de Botas Félix Marx, plano B em prática.
Centro da cidade. Banco Central. Confusão, empurra-empurra, pandemônio, queda da bolsa da senhora idosa. Seguranças perdidos entre os baixos salários, o cumprimento do dever e o nojo de agarrar aqueles dois malucos cobertos de bosta, portando quatro baldes transbordando excremento, granadas de esgoto e coquetéis molotov feitos com garrafas cheias de urina. Arremesso na boca do caixa. Dinheiro sujo. Crash mal-cheiroso. Corpo de bombeiros acionado. Uniforme vermelho-cáqui maculado. Camisa-de-força. Condução a contragosto. Banco interditado por vários dias. Trabalho intenso da turma da faxina. Prejuízo - pequeno, é verdade - no bolso do banqueiro balofo. Missão cumprida, enfim.
Periferia. Zona rural. Manicômio Judiciário Carl Gustav Jung. Nauseabundo e Rubicundo, nus e extremamente contrariados, tomam banho. Uma grossa mangueira expele dezenas de litros de água por segundo. Os gritos de ambos ecoam nas dependências do estabelecimento de saúde mental:
- Penitenziagite! Penitenziagite! Penitenziagite!
Horas depois, cela acolchoada, cabeças raspadas, envergando alvas camisas-de-força, Nauseabundo - cuja fetidez incrustada não era extirpada nem à força de litros de desinfetante - propõe nova experimentação, desta feita, lúdica:
- Vamos brincar de lei do mais forte?
- Putz, já é.
Batem as cabeças, com toda força, dezenas de vezes. Tombam inconscientes, simultaneamente. Lá fora, em algum lugar do telhado, um gato ronroneia, langoroso.

Carlos Cruz - 02/09/2007

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Memórias do Cárcere



Alberto era um exemplo perfeito de que a punição pela privação da liberdade, mesmo no decadente sistema prisional brasileiro, podia dar bons resultados. Livre, após cumprir quatro anos de reclusão por roubo, era um novo homem, reabilitado, pronto para reintegrar-se à sociedade. Estudou Direito, curso dinâmico, especializando-se na esfera penal. Defendeu, aguerridamente, o verdadeiro responsável por sua transformação: Tonhão Tripé, seu antigo companheiro de cela. Bastaram poucos meses para ter seu esforço recompensado: Tonhão foi beneficiado com o regime de progressão de pena. Radiante, Alberto aguardou, à porta do presídio, a saída de Tonhão. Tão logo o viu, correu em seu encontro, abraçando-o carinhosamente. Tentou beijá-lo.
- Conseguimos, meu amor.
- Ih, sai pra lá, sua bichona escrota! Tô livre e louco pra comer uma xereca. - replicou Tonhão, afastando Alberto com um safanão.
- Seu filho da puta ingrato! Depois de tudo que fiz por você, é assim que me paga?
- Assim que descolar uma prata, pago seus honorários, Dr. Alberto. Agora, vai pra puta que o pariu!
Alberto ficou ali, estático, vendo seu grande amor afastar-se. À noite, na boate gay, afogou seus dissabores com muitas doses de uísque. Terminou na cama suja do motel de quinta, com o negro bem-dotado com cara de mal. Pela manhã, à ardência no esfíncter somou-se a constatação da ausência do negão, da carteira, do telefone celular e do carro. "Porra! Quem foi o filho da puta que disse que o crime não compensa? Desde que abandonei aquela vida, só tomei no cu..." - refletiu. Saiu do motel e seguiu direto para a loja de armas.
Rodou no primeiro assalto, dois dias depois. Na cadeia, conheceu Tião Pé-de-mesa, o terror dos estupradores. Mas essa é uma outra história...

Carlos Cruz - 08/10/2007

sábado, 6 de outubro de 2007

Power Metal Caipira



Malgrado o visual doidão - cabelo moicano tingido de verde, alargadores nas orelhas, tatuagens e piercings por todo corpo e rosto - o que Kid Chitão gostava mesmo era de música sertaneja. Onde houvesse um show de alguma das múltiplas duplas ou cantores de seu estilo musical preferido, lá estava ele, figura fácil destacando-se no mar de camisas xadrezes, chapéus, cinturões, calças jeans e botas de couro cru marrons.
Certa noite, após levar um fora da namorada Mary Lu, durante a apresentação da dupla Chapelão e Chapeludo no Pátio de Exposições de sua cidade, Kid Chitão, profundamente abatido e desolado, entregou-se, sem rédeas, aos braços do deus Baco, tomou todas e mais algumas. A embriaguez veio à galope. Ao final do espetáculo, completamente bêbado, acabou adormecendo num dos bancos da praça central, sob o busto de D. Pedro I, montado em seu cavalo. Lá pelas tantas, despertou com um safanão de um policial militar:
- Ô Cachaça! Acorda aí! Não pode dormir aqui não! Ô! Ô!
Kid abriu lentamente os olhos, o rosto do PM aos poucos formando-se à sua frente; viu olhos injetados e vermelhos - sangue - viu sangue naqueles olhos. Sentou-se com dificuldade, meio atordoado. Tartamudeante, redargüiu da única forma que lhe veio à mente naquele momento:
- Seu guarda, eu não sou vagabundo, eu não sou delinqüente, sou um cara carente. Eu dormi na praça pensando nela. Seu guarda seja meu amigo, me bata, me...
O golpe do cacetete no dorso interrompeu a argumentação musical de Chitão. Ainda levou mais duas porradas antes de debandar, trôpego, em meio à saraivada de impropérios:
- Odeio música sertaneja! Vaza, seu arrombado! Vaza, porra!

Carlos Cruz - 16/08/2007

Orgasmatron




Asdrúbal, sessenta e oito anos, recusava-se a aceitar o peso dos anos. Desdenhava dos antigos colegas de farra que eventualmente encontrava jogando damas na praça ou em frente às casas de bingo. Aficionado por heavy metal e todas as variações do gênero, tatuagem de caveira no ombro, brinco de crucifixo na orelha, cabelos longos tingidos de preto azeviche e cuidadosamente despenteados, jaquetão de couro, montado em sua Harley Dayvidson, ainda arrancava alguns suspiros das mulheres da cidade, a maior parte interessada em sua conta bancária, é verdade. Gabava-se de sua virilidade, de sua potência sexual sem uso de medicamentos ou afrodisíacos. "Podem acreditar, o papai aqui nunca brochou nem tampouco precisou de Viagra." - dizia aos amigos incrédulos.
Convidou Eliana, a garota mais cobiçada do bairro, para dar uma volta em sua moto. Ela aceitou. Boquiabertos, os amigos viram-na passar, agarrada à cintura de Asdrúbal, exibindo sua enorme bunda, delineada pela justíssima calça strech.
Após algumas cervejas no Juda's Bar, seguiram para o motel. Enquanto Eliana se despia, Asdrúbal entrou no banheiro, retirando do bolso da jaqueta sua arma secreta. "Buchinha-de-bode. Levanta até defunto." - dissera-lhe o cearense. "Mas tem que tomar só uma colherinha de chá. É muito forte. Se tomar muito, o sujeito corre o risco de empacotar." Asdrúbal levou a garrafa à boca, tomando vários goles da beberagem. "Hoje, o bicho vai pegar. Vou fazer essa gostosa subir nas paredes." E fez. O efeito da garrafada foi imediato. O pênis de Asdrúbal ficou duro como pedra e assim permaneceu durante muitas horas, horas de muito sexo, ao som de muito heavy metal. Asdrúbal estava prestes a gozar pela quarta vez, seu pênis pulsava no interior do ânus de Eliana, que rebolava sua deliciosa e descomunal bunda. Foi quando sentiu a "pontada" no peito, seguida da intensa dor. Tombou para o lado, morto. O pênis, que recusava-se a amolecer, apontava para o teto. O pequeno mas potente Cd player tocava "Orgasmatron", do Motörhead, a música preferida de Asdrúbal, cujo ricto de morte era um sorriso de orelha a orelha. Morrera feliz.

Carlos Cruz - 28/09/2007

Cefaléia





- Dor de cabeça de novo? Porra, é a quadragésima oitava noite seguida que você diz a mesma coisa. Quer saber de uma coisa, enfia essa boceta no cu, que vou procurar na rua! - esbravejou Juvenal, batendo violentamente a porta do quarto. Maria Imaculada tomou um analgésico. Abriu o armário. "Pode sair. Ele já foi." - disse, para o sujeito nu, oculto entre fronhas, lençóis e edredons.

Carlos Cruz - 05/10/2007

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Quinze Minutos





Imobilizando ponteiros de relógios e entortando talheres com o poder da mente, tornou-se figura célebre nos anos oitenta. As emissoras de televisão travavam renhidas disputas para tê-lo em seus programas dominicais, pagando-lhe generosos cachês. Alguns diziam que tinha pacto com o Diabo, outros, que era iluminado por Deus. Conquistou fama e fortuna, prodigamente dissipada em festas psicodélicas decoradas com relógios antigos e talheres de prata deformados, regadas a beberagens refinadas e putas caras. Perdeu seu posto de celebridade para o homem que peidava fogo. Ninguém o queria, não dava mais ibope, deixara de ser novidade. Hoje, é visto pelas ruas, fuçando lixeiras, disputando latas de cerveja vazias com outros catadores, as quais amassa à distância, sem usar os pés.

Carlos Cruz - 24/07/2007

Lacucaracha






"COMA UMA BARATA VIVA E GANHE UM CARRO ZERO." - aquela frase, escrita com grandes letras luminosas, que junto às gravuras do automóvel, da barata e do palhaço sorridente, compunham o outdoor gigantesco, estrategicamente fixado em frente ao imponente shopping center, certamente causaria um frio na espinha de Arquimedes se dotado fosse de tal estrutura óssea. Através do vidro transparente do frasco de maionese, leu novamente a propaganda. "Caralho. É muito azar! Acordar transformado em barata, ser capturado e devorado pelo escroto do meu meio-irmão. E, de quebra, o filho da puta sai dirigindo um reluzente carro novo..."
Entraram no shopping. Bem próximo à entrada, havia uma pequena fila, em sua maioria homens, aguardando a vez de tentar a sorte mediante aquela horrenda degustação dos insetos nojentos que traziam consigo. "Era muita sacanagem! Justo ele que sempre tivera um gosto refinado para arte, música e literatura, adepto da boa gastronomia, apreciador dos melhores vinhos, terminar seus dias na forma de um asqueroso artrópode, destrinchado, mastigado e engolido por seu odioso e odiado meio-irmão, cujos gostos e hábitos demonstravam sua tendência à podridão: punk rock, roupas sujas e andrajosas, piercings e tatuagens pelo corpo, histórias em quadrinhos, bebidas e putas de baixa qualidade e preço.
A voz gutural do sujeito alto e bem vestido, ao microfone, interrompeu seus pensamentos. Ao que parecia, o circo dos horrores ia começar. O primeiro candidato, um garoto aparentando ter acabado de ingressar na vida adulta, assim que ouviu seu nome, desmaiou, sendo imediatamente desclassificado. O segundo vomitou só de olhar para a barata que movimentava-se freneticamente no interior do recipiente em suas mãos. E assim, um após o outro, os candidatos foram caindo. Arquimedes via aproximar-se o instante fatídico. Sabia que Aristóteles, seu meio-irmão, não hesitaria quando tivesse de devorá-lo, já vira-o comer coisas bem piores que baratas. "Blaaargh!" Pronto, outra regurgitação, outro candidato fora do páreo. Seu execrável meio-irmão era o seguinte. "Aristóteles da Silva!" - a voz do homem de terno ribombou, fazendo o pequeno corpo de Arquimedes estremecer. Tentou fugir quando Aristóteles retirou a tampa de sua prisão. Não foi ágil o suficiente. Seu meio-irmão, segurando firmemente duas de suas pernas, levou-o à boca. Esperando a dentada fatal, eis que surge a luz no fim do túnel, ou melhor dizendo, o som no fim do shopping. A música de fundo, "We Are The Champions", tocada desde o início da disputa, foi substituída por outra que - Arquimedes sabia - seu meio-irmão detestava: um rock nacional, que fizera algum sucesso nos anos oitenta, cantado por uma banda do tipo "pré-fabricada", cuja letra fazia referência a um romance de Kafka: "A Metamorfose". Arquimedes lera-o várias vezes. Aristóteles, que já exibia todos os dentes, a bocarra escancarada, ao ouvir a famigerada música, titubeou. Sua aparência foi-se modificando, empalideceu, os lábios ficaram lívidos. Mesmo visivelmente enjoado, Aristóteles depositou o desesperado Arquimedes entre suas mandíbulas. Foi quando sentiu a massa quente, oriunda das entranhas de seu meio-irmão, envolvê-lo e, num jorro fétido, projetá-lo para a liberdade. O vômito de seu irmão fora sua salvação. Desembestou no meio do shopping, movimentando alucinadamente suas seis diminutas pernas. Um moleque que assistia à prova, ao ver Arquimedes passar ao seu lado, não pensou duas vezes: pisou com toda a força sobre seu frágil corpo de inseto. Morreria esmagado se o menino não estivesse calçando o novíssimo e caríssimo tênis Myke, provido de quarenta molas confeccionadas em borracha de alta densidade, projetadas para absorver terremotos em estruturas prediais no Japão. "Bendita tecnologia!" - pensou, quando o menino retirou o pé de cima dele. Escapou ileso, embrenhando-se no sistema de esgotos do shopping. Tomou o rumo de casa, situada no mesmo quarteirão do shopping, ocultando-se no quarto de ferramentas do avô, onde raramente alguém aparecia. Ali permaneceu até a manhã do dia seguinte quando, aliviado e surpreso, percebeu que tinha voltado a ser humano.
Sua primeira providência foi reunir seus livros de Voltaire, Kafka, Tolstoi, Dostoievsky, Shakespeare, Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, enfim, toda a coleção de clássicos da Literatura Mundial e Brasileira, depositá-los em um saco plástico e jogar tudo no lixo.
"De hoje em diante, só lerei revistas de fofocas, gibis infantis, jornais sensacionalistas e Saulo Joelho." - sentenciou.

Carlos Cruz - 16/08/2007

Rubicundo e Nauseabundo - Mancômunos Manicômonos



Sexta-feira santa. Meio-dia. Sol a pino. Rubicundo passeia tranqüilamente com seu cachorro imaginário Red Rex no Central Park. Logo após o chafariz em forma de anjo mijão, encontra-se casualmente com Nauseabundo, mal divisado em meio à profusão de moscas varejeiras. Estacam, entabulando breve colóquio:
- Dr. Nauseabundo, há tempos não o vejo! Noto que continua o mesmo velho decadente fedegoso. Ainda na Política?
- Não mesmo, caro camarão. Aquilo fede. Podridão por podridão, fico abaixo do chão.
- Voltou a limpar esgotos?
- Não. Cavo poços. Às vezes, covas. E V. Exa., nos circos da vida?
- Negativo. Vida de palhaço é muito triste. Ninguém mais ri. Palhaço só chora. Ademais, criança é bicho mal.
- Ah. Que pena. Gosto de circo. Uma vez trabalhei num. Limpava a jaula dos elefantes. Aprendi que a similitude, o ponto de aproximação, entre o homem e o elefante consiste no poder altamente elevado que ambos possuem de produzir merda.
- É a mais pura verdade... Interessante isso.
- O quê, Rubicundo?
- O destino. A providência, talvez. Pense comigo: hoje é sexta-feira santa, o sol está a pino porque são doze horas, não posso caminhar neste horário devido a meu problema epitelial, contudo, justo hoje, decidi mandar às favas as recomendações médicas. Daí, encontro você, que não via há meses. Falamos de política, podridão, futum, poços, esgotos, sepulturas, circo, elefantes, palhaços, homens e merda. Não é genial?
- Sei não, amigão. Acho sinceramente que não deve mais contrariar seu dermatologista.
- Porra, Nauseabundo, o fedor afetou seu cérebro? Não percebe o que acabamos de fazer? Filosofamos a mais pura e profunda filosofia.
- Continuo sem nada entender, ínclito Red Bull.
- Tá. Tentarei ser mais claro. Nosso diálogo contém oito substantivos concretos e três abstratos, o que perfaz um total de onze vernáculos, número cabalístico que significa o infinito, o etéreo, a deidade.
- Caralho, definitivamente, o sol derreteu seus miolos.
- Topas um experimento exemplificativo de minha teoria, nobre mal-cheiroso?
- De fétido e de louco, todos temos um pouco. Manda.
Horas depois, tremendo corre-corre, os evangélicos em dabandada, atropelando-se uns aos outros. Nave balouçante. Balbúrdia. Gritos.
- Abriram as portas do Inferno! - alguém bradou.
Rubicundo, coberto de bosta, fita Nauseabundo - que a despeito da rubra tinta sobre o corpo continuava fedendo mais que o amigo - olhar altivo satisfeito, sentencia:
- Viu só? Não falei? Debandada na abadia. Filosofia cabalística. A religião nos limites da simples razão. Somos merda. Somos Deus e o Diabo. Somos uno.
- E fedemos mais que a morte.
- É isso aí. Agora você entendeu.
- Entendi.
- Vamos sacramentar?
- Como?
- Eu cago, você mija. Eu arroto, você peida.
- Putz, já é.

Carlos Cruz - 25/08/2007

domingo, 5 de agosto de 2007

Adolf Hitler Vai ao Cinema (da série "Estilos")





"Bigode bacana..." - pensava o Führer, ante o cartaz do filme de Charles Chaplin.
Carlos Cruz - 02/08/2007

Auto-retrato de Van Gogh na Visão de Salvador Dali




Seu filho da puta! Também quero ser famosa! – vociferava, furiosa, a ensangüentada orelha.
Carlos Cruz – 16/06/2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Puberdade


Provocante, ela sorria enquanto transavam. Mexia os quadris, freneticamente, enquanto ele deliciava-se com a visão daquela bunda enorme, seu pênis cravando-se cada vez mais fundo naquele rabo suculento e quente. Ejaculou dezoito vezes, espalhando seu sêmen pelo corpo turbinado da morena, que não parava de sorrir. Desfalecido, com o pau esfolado e o saco dolorido, desabou na cama, despertando na tarde do dia seguinte. Desesperou-se quando viu sua imagem refletida no espelho do banheiro: o rosto deformado, repleto de espinhas amarelas purulentas. Levou as mãos à face, contemplando, com horror, a profusão de pêlos longos e negros que havia germinado nas palmas.
- Desgraçada! O que você fez comigo? - esbravejou, percebendo, pela primeira vez, o escárnio no sorriso da modelo. Arremessou a revista, amarrotada e com as páginas grudadas, pelo basculante do banheiro.

Carlos Cruz - 02/07/2007

terça-feira, 26 de junho de 2007

O Balão





-Puta que pariu! Que sujeira! - exclamou a empregada, ao deparar-se com os pedaços de carne e todo aquele sangue ao longo das paredes, dos móveis e do teto. O computador estava ligado. Limpou o monitor. Aturdida, leu a seqüência interminável de elogios à poesia de seu patrão, conhecido na vizinhança e nos meios acadêmicos como "João, O Balão". Vira acontecer várias vezes, elogios o faziam, literalmente, inflar. Críticas negativas surtiam o efeito inverso. "Esses médicos filhos da puta não servem para nada. 'Sr. João, sua doença é nova. É o primeiro caso registrado nos anais da Medicina...' Vão todos tomar no cu, ou melhor, vão tomar nos anais deles" - ouvira-o esbravejar, certa vez. Olhou o monitor novamente. "É. Parece que esta agradou geral... Coitado do Seu João. O sucesso, que ele tanto queria, acabou fazendo-o estourar." - pensou, enquanto retirava um pedaço de intestino de sobre o teclado.

Carlos Cruz - 25/06/2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Pequeno Colóquio Víscero-intestinal



- Que merda! - exclama o Ascaris lumbricoides.
- Só. - redargüe, com cara de nojo, a Taenia saginata.
Próximo a eles, uma Entamoeba histolytica agitava, desesperadamente, seus pseudópodes, tentando entrar na conversa.

Carlos Cruz – 18/06/2007

O Jugo & A Maldição ou Obesidade & Elefantíase





Não bastasse o fardo de seus cento e cinqüenta quilos, ainda tinha de arrastar, inutilmente, aquele bizarro saco gigante.

Carlos Cruz - 17/06/2007

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Fogo-fátuo




O atrito contra o abrasivo da caixa incandesceu o fósforo. Por alguns segundos, ficou observando a chama consumir o palito. Gostava de admirar o fogo, que mal havia nisso? Desde os primórdios, o fogo representava um elemento essencial à sobrevivência humana, lera em algum lugar. Então, por que cargas d'água era tão discriminado? Resignado, suportara, durante anos, as repreensões, as surras, as punições, mas aquilo era demais. Quem esse filho da puta pensava que era para xingá-lo daquele jeito? Piromaníaco era o pai dele. Não sabia o significado da palavra mas, certamente, devia ser algo muito ruim. A chama do palito estava quase se apagando. Largou. O combustível fez o fogo alastrar-se rapidamente. Sentou-se e contemplou, como das outras vezes. O odor o transportou de volta à infância. Lembrou-se do churrasco preparado por seu pai aos domingos, música, festa, a família toda reunida. A raiva deu lugar a outro sentimento, felicidade, talvez.


A secretária chegou um pouco mais cedo ao trabalho. Passou em frente à entrada do restaurante que funcionava no térreo, no momento em que um garçom conhecido saía. Cumprimentaram-se. Subiu pelas escadas até o segundo andar. Ainda no corredor, sentiu o cheiro. "Huuum" - pensou - "hoje vai ter churrasco no almoço." Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta, entrou no consultório...


O detetive de plantão, com ar de enfado, golpeava o teclado da velha máquina de escrever, enquanto ouvia o gaguejante zelador, o qual relatava como encontrara, sobre o divã, o cadáver causticado e ainda fumegante do psiquiatra. "Quanto à secretária" - dizia - "parecia um personagem de um filme de terror, com todos aqueles palitos espetados no rosto e aquela vela acesa enfiada no ânus. Que coisa sinistra." O policial interrompeu a digitação para indagar ao escrivão, que trabalhava na mesa ao lado, qual era o prato do dia na pensão em frente à DP. "Churrasco" - respondeu o escrivão.

Carlos Cruz - 14/06/2007

domingo, 10 de junho de 2007

Proteger & Servir ou O Massacre




Foram meses de laboriosas investigações. Centenas de cafés e cigarros, muitas noites mal-dormidas. Sem falar na cobrança implacável do Delegado que, por sua vez, sofria pressões dos políticos. "Puta que pariu! Até o governador tá me ligando!" - esbravejou Dr. Sampaio, após desferir um sonoro murro na mesa de seu gabinete. Mas todo aquele esforço valera à pena. Finalmente lograra êxito: ali estava o pedófilo, algemado, prosternado, aos prantos, implorando por sua vida - um verme fedorento, um merda. Deu-lhe um violento soco no nariz, que o fez perder os sentidos.
Arrastou-o até a pesada cama de ferro, onde algemou suas mãos e pernas, na posição do "Homem Vitruviano" de Da Vinci. Desenrolou a longa corda que trouxera consigo, amarrando o corpo do pedófilo em torno da cama. Tentou puxar a corda, que não se mexeu. É, estava bem preso. Iniciou o trabalho pela arma do crime: com um único golpe de sua afiadíssima faca militar, decepou o pênis do filho da puta. O urro do pedófilo poderia ser ouvido a muitos metros de distância, contudo, tal possibilidade era bastante remota, considerando o local ermo no qual se encontravam. Depois, cortou o saco escrotal, os dedos das mãos, as mãos, os braços. Precisou de muita força e da face serrilhada da faca, certas articulações não eram fáceis de cortar. O sangue jorrava, o pedófilo gritava. Por fim, o silêncio. Morto, estava morto. Prosseguiu sua tarefa, incansável, cortando, cortando, sem parar, sem pensar...
Terminara, enfim. Coberto de sangue, olhou o amontoado de carne, ossos e vísceras em que se transformara o pedófilo. Sabia que não receberia medalhas nem condecorações pelo que fizera. Não sentia-se bem nem mal, apenas um certo alívio e aquela agradável sensação do dever cumprido.
Tomou um banho frio, vestiu as roupas que trouxera em sua valise. Foi para casa. Seu filho Mateus, de cinco anos, veio recebê-lo com um sorriso e um papel nas mãos. Abraçou-o.- Papai, fiz um desenho pra você.
Era um policial perseguindo um bandido mascarado. Sobre a figura do policial, uma seta e a inscrição: "PAPAI". Abraçou Mateus com mais força. Beijou sua esposa, antes de responder que correra tudo bem no trabalho. Dormiu profundamente aquela noite.

Carlos Cruz - 05/06/2007

sábado, 9 de junho de 2007

Plantão Médico








Viu surgir a cabeça. Segurou com cuidado, puxou, bem devagar. Percebeu a dilatação, os ombros eram a parte mais difícil. Passaram. Depois os braços, o tórax, o abdômen, a região pélvica, os glúteos, as pernas...
Provavelmente, há alguns anos, acharia aquilo engraçado. Contudo, após trinta anos de carreira, o proctologista considerou o resultado do procedimento apenas inusitado. A boneca Barbie, toda lambuzada de excrementos, sorria na bandeja, enquanto o travesti, a julgar pelos gemidos, parecia haver tido um orgasmo.


Carlos Cruz - 08/06/2007

O Vermelho e o Negro








Acordou feliz naquele vinte e cinco de abril. Faziam exatos três anos que conhecera Cláudia, a mulher de sua vida. Amava-a, como nunca amara outra mulher. Comprou flores e um vestido vermelho - a cor preferida dela. Seguiu radiante para encontrá-la na casa, alugada há poucos meses, duas horas antes do combinado.
Estacou, estupefacto, ante a visão de sua amada - de espartilho, cintas-ligas e meias sete oitavos vermelhas - sendo selvagemente sodomizada pelo negro, sobre a cama na qual tiveram tantas noites de amor. Comeu as rosas vermelhas, uma a uma, vermelho de raiva.


Carlos Cruz - 06/06/2007

O Fenômeno


Iniciou a arrancada no meio do campo. Driblou o primeiro, o segundo, o terceiro, deu uma rápida olhadela em direção ao gol adversário, escolheu o canto, chutou e fez o gol. Os espectadores, às margens do campo, foram ao delírio.
A explosão da bomba de gás lacrimogênio, lançada pelos policiais do Batalhão de Choque, interrompeu a comemoração. Um a um, os presos foram se sentando, nus, no pátio do presídio, enquanto os bombeiros recolhiam o corpo no interior da cela 53, e aquela massa disforme, cabeluda, suja de terra e sangue, que estava no fundo da rede.

Carlos Cruz – 07/06/2007

segunda-feira, 4 de junho de 2007

A Intrincada Trinca ou Escatológica Loucura



Artur era obcecado pelo número três. Seus hábitos, seus gostos, suas compras, tudo em sua vida obedecia à regra do três. Ia três vezes seguidas ao cinema assistir o mesmo filme. Lia o mesmo livro três vezes. Comprava três peças de roupa exatamete iguais. Sapatos? Comprava três pares. Adaptou o velho adágio à sua loucura: um era pouco, dois era insuficiente, três era a perfeição.
A explicação para tal comportamento estava na infância de Artur, precisamente aos onze anos: sua mãe, católica fervorosa, ao flagrá-lo se masturbando, fê-lo passar horas ajoelhado sobre grãos de milho, rezando centenas de Padres-nossos e Ave-Marias, olhando fixamente para a imagem da Santíssima Trindade.
Ironicamente, Artur nascera no dia três de março de mil novescentos e setenta e três. Hoje era uma data especial: fazia trinta e três anos. Pedia uma comemoração especial. Convidou Osvaldo, seu amigo, para a festa em sua casa. Pediu à Vanessa, sua esposa, que usasse aquele vestido vermelho, tão apreciado por ambos. Após esvaziarem três garrafas de vinho, partiram para o ménage a trois, sob protestos de Vanessa, que estava menstruada. Alguns poucos beijos no pescoço foram suficientes para convencê-la. Foram três horas de sexo selvagem, regado à vinho, sangue e esperma. Apesar da dificuldade – não era mais um adolescente – Artur conseguiu ejacular três vezes. Foi quando viu a mancha de sangue e esperma sobre o lençol e não teve dúvidas: subiu na cama, agachou-se e defecou sobre a mancha. Osvaldo e Vanessa sairam do quarto, apavorados, vestiram-se e se retiraram da casa o mais rápido que puderam, o cheiro de merda era insuportável. Artur ficou lá, observando sua grotesca e fétida obra: sangue, esperma e merda. Daria um quadro, pensou. Poderia se chamar: “A Escatológica Tríade”. Tal pensamento causou-lhe uma nova ereção. Súbito, o ambiente à sua volta se modificou, tornando-se a sala de sua antiga casa. Tinha novamente onze anos. Diante de si, a Santíssima Trindade, com Deus à direita, fitando-o com seus olhos flamejantes, repreendendo-o por seus pecados. Caiu de joelhos, prostrado. Sentiu a dor lancinante, os grãos de milho perfurando sua pele. Começou a rezar...
Vanessa voltou no dia seguinte. Artur estava no mesmo lugar, ajoelhado diante do excremento, o olhar vazio, rezando, balbuciante: “Pai Nosso que estais no Céu...” Ante aquela surreal e deprimente cena, ela não conteve a tripla exclamação:
- Porra! Caralho! Buceta!

CARLOS CRUZ – 04/06/2007

Vôo Noturno






O comprimido o fez sentir-se leve. Olhou para o céu, escolheu uma estrela, ruflou suas asas e saltou...
Os bombeiros tiveram enorme dificuldade em recolher os pedaços do corpo. Alguém ouviu um deles murmurar: "Filho da puta. Por que não deu um tiro na cabeça?"

CARLOS CRUZ - 27/05/2007

DIA DOS PAIS






Olhou o bebê através do vidro - uma criança linda. Sua esposa dormia no quarto ao lado. Uma enfermeira deu-lhe parabéns. Fôra uma decisão difícil, tomada após o resultado do espermograma. Ligou para seu amigo Ricardo, o pai: "Traz o charuto. Acabou de nascer."

CARLOS CRUZ - 09/05/2007

domingo, 3 de junho de 2007

Náufragos



Navega nos mares da populosa cidade
A embarcação de quatro rodas, transporta as
Vítimas do sistema, desumano e cruel
Ilustres anônimos espremem-se, acotovelam-se
Os modernos escravos mal-remunerados.
Nau absurda, surrealista
Etnias variadas, mescladas, conformadas
Gente como a gente, descontentes
Remoendo sua sina proletária
Estagnados, maltratados, mal-alimentados
Incongruente cotidiano
Rodando, rodando, sem sair do lugar
Ou trabalha ou é lançado ao mar.

CARLOS CRUZ – 02/04/2007

Baú da Felicidade





A roleta rodou. Estanislau, jogador contumaz, torceu como nunca havia torcido antes. A sorte nunca lhe sorrira: foram anos de jogatinas infrutíferas e apostas frustradas. Mas aquele dia seria diferente, tinha que ser. A roleta foi diminuindo as rotações até parar. Fechou os olhos, cruzou os dedos, fez uma prece.
Levantou-se, trêmulo. Os ouvidos zumbiam. Seu algoz jazia no chão, inerte. Soltou uma gargalhada. Finalmente fora contemplado pela sorte: o tiro saíra pela culatra.

CARLOS CRUZ - 28/05/2007