sexta-feira, 25 de julho de 2008

A Cruz e a Vaca




Desgarrada do redil hindu, a vaca prosterna-se e persigna-se ante a cruz de caravaca. Entrementes, iracundos brâmanes riscam facas, salivam e gritam a plenos pulmões: "Morte à traidora!"
Horas depois, todos satisfeitos. Roda de mantra, Brahma gelada, churrasco. Os fumos aplacam a fúria de Brahma, o deus. A vaca cumpriu seu destino inexorável juntando-se às semelhantes no grande rebanho das condenadas. Virou mártir. Virou santa. Virou janta.

Carlos Cruz - 22/07/2008

sábado, 19 de julho de 2008

A Panela



À primeira vista, era uma panela como outra qualquer. De pressão. Uma panela de pressão como outra qualquer. Tinha forma circular, tinha cabo, tampa e aquela coisa vermelha com furos que roda e expele vapor. Quem passasse casualmente por ela, quem a visse ainda que de relance, quem a observasse detidamente ou não, quem a analisasse profundamente ou superficialmente, diria, sem titubear: é uma legítima panela de pressão. Mas não. Não, não e não. De novo não. Havia um diferencial, algo que não se podia observar de fora e fazia única aquela panela: ela falava. Sim, é isso mesmo, a panela era uma panela falante, mas não uma panela falante qualquer. Não! Era uma panela falante de muitas vozes, meio poeta, meio contista, meio cronista, lá uma vez ou outra até mesmo meio romancista. Uma panela de pressão falante intelectual metida à besta? Talvez. O fato é que a panela não parava de falar, recitava poemas, contava histórias, fazia crônicas e... xingava! Pestanejava, proferia impropérios, reclamava, insurgia-se, revoltava-se, reivindicava direitos... É. Era uma panela de pressão falante poeta contista cronista romancista intelectual metida à besta crítica e temperamental.
A panela foi levada para o INMETRO e submetida a uma série de testes com vistas a descobrir a origem das vozes. O problema maior era a tampa. Ninguém conseguia retirá-la. Tentou-se de um tudo: força física, calor, frio, choque térmico, um instrumento parecido com um desentupidor de pia, ímãs. Tudo em vão, a tampa não se mexia. Thomas Green Morton, Uri Geller, Padre Quevedo, James Randi, Mister M, dentre outros paranormais e mágicos foram chamados às pressas e também tentaram, sem sucesso, remover a famigerada tampa. Apelaram para a espiritualidade. Pais-de-santo, padres, pastores, xamãs, caciques, monges, esotéricos e místicos de toda sorte fizeram seus cultos, rituais e mandingas. Nada. A panela, pelo visto, era não-sectária e atéia. O mais constrangedor era ouvir as troças malcriadas da dita cuja a cada novo fracasso. Além de tudo, ainda era uma pândega. Por fim, a panela foi levada, sob veementes protestos de baixo calão, para a NASA, onde foi submetida a novos testes e novas tentativas de remoção da tampa. Os dias foram passando, os testes fracassando e os xingamentos se acentuando. "Porcos imperialistas! Abaixo o imperialismo ianque! Abaixo a ditadura estaduniense! Deixem o povo iraquiano viver em paz! George Bush é a reencarnação de Adolf Hitler!" Além de tudo, a panela também tinha inclinações esquerdistas.
Quando os sucessivos insucessos somados às imprecações da panela já começavam a desanimar a equipe de especialistas, eis que aconteceu o fato que deslindou o mistério: um físico, exausto, a fim de abstrair do estressante trabalho e relaxar um pouco, iniciou a leitura, em voz alta, de uma tradução inglesa de um dos livros do escritor Saulo Joelho. Súbito, a panela interrompeu o palavrório e começou a expelir um vapor vermelho. À medida que o físico lia, mais vapor a panela expelia. Dentro em pouco, a panela passou a expandir-se e encolher-se, intermitentemente. Parecia uma maria-fumaça de desenho animado ou a respiração de uma pessoa colérica. O físico, estimulado pelos colegas, prosseguiu a leitura. O bufar da panela foi aumentando, aumentando, aumentando até que... explodiu! A tampa cravou-se no teto e da panela saíram centenas de homenzinhos e mulherezinhas que olharam para os atônitos especialistas e, em uníssono, disseram: "Porra, Saulo Joelho em inglês é demais! Não há panela de escritores que agüente!"

Carlos Cruz - 19/07/2008

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Arte é o caralho!




"Arte é o caralho!" - esbravejava, do alto da escada, o artista plástico gay ateu praticante, enquanto dava os últimos retoques na grande glande de sua última criação escultural, intitulada carinhosamente de "O Falo de Deus".

Carlos Cruz - 16/07/2008

El Sufridor



Miguel Pereira, 27 de junio de 2008

Queridos papá, mamá, hermanitos y hermanitas:

¿Qué tal? ¿Cómo están todos por ahí? Espero que estén todos bien y con salud.
Yo estoy bien, aunque un tanto aburrido de mi rutina que es muy desgastante. Después de leer mi carta, digame si no tengo motivos para desear volver a nuestra alegre y confortable casita. Echo de menos de mi vida con vosotros. Bien, lo que no tiene remedio, hay que remediarse.
Todos los días, a las 5 h en punto, el timbre del despertador suena en mi oído, haciéndome saltar de la cama. El sonido del despertador es tan estridente que, por veces, literalmente me caigo de la cama.
Siempre tengo mucha hambre por la mañana, sin embargo, no tengo tiempo para desayunar, por eso tomo un café, como una galleta y... a la calle. Empezó mi día.
Primero, a las cinco y media, entro en el autobús que generalmente está abarrotado de personas y animales, muchos y variados animales: pajaritos, gallinas, patos, perros, gatos, una vez o otra, hasta cerdos asoman. El hedor es casi insoportable, pero tengo de resignarme, pues el viaje es largo. El trabajo está muy lejos de mi apartamento, empiezo mi jornada laboral a las ocho en punto, trabajo hasta las 12 h. Después tengo un intervalo de una hora para almorzar. A la 1 h, estoy de vuelta al trabajo, donde me quedo hasta las 18 h. Tengo poco tiempo para bañarme y arregarme, a las 19 h tengo de estar en la escuela, de donde salgo a las 23 h, cuando vuelvo a mi apartamento. Nunca me acuesto antes de la 1 h de la mañana.
Muchos compañeros de trabajo estudian en la misma escuela, algunos en la misma clase que yo. Son todos muy animados y soñadores, quieren mucho vencer en la vida y abandonar el trabajo en la manufactura, así como yo.
Mis queridos, no pretendo dejarlos preocupados, el fin del curso y mis merecidísimas vacaciones están cerca. Soportaré la tormenta hasta allá. Mientras no llegan, recen por mi.
Muchos besos a todos.

Os quiero mucho.
Besos.
Carlos Cruz

terça-feira, 15 de julho de 2008

O Sacolão



Malgrado sua aversão por funk, vez ou outra, ao passar por certas vitrines reluzentes, Estanislau não resistia a lançar gulosas porém furtivas olhadelas para aquelas suculentas moças com nomes frutíferos e carnes abundantes rebolando animada e alegremente na tela da grande televisão de plasma.

Lambeu os lábios, esfregou as mãos e sorriu esperto quando leu o cartaz afixado à porta do puteiro: "Só hoje. Sensacional promoção no Tia Raimunda's Sacolão: leve a Mulher-berinjela, toda ela, pelo preço de uma banana nanica."

Era uma puta negra puta. "Que substância!" - pensou. Tamanho tesão fê-lo esquecer a precaução: deixou-se algemar na cabeceira da cama. Quando percebeu a origem do cognome da prostituta, era tarde. A negra era, na verdade, um negão dotado de uma assustadora e gigantesca estrovenga. Os gritos de Estanislau foram abafados pelos do MC Não-sei-das-quantas que esgoleava no pequeno mas potente aparelho portátil estrategicamente colocado ao lado do leito: "crééééééééu!"

Carlos Cruz - 15/07/2008

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Vaga Bunda




Ainda que não abundasse na movimentada calçada flutuante, esforçava-se por rebolar-se. Ainda que não sobressaísse no colorido mar abundante, esforçava-se por irromper-se. Ainda que não inflasse no arregalado olhar esfuziante, esforçava-se por estourar-se. Ainda que não acendesse no estrelado céu resplendente, esforçava-se por ascender-se. Ainda que não regurgitasse no inteiriçado pênis pujante, esforçava-se por engolir-se. Extremar-se. Implodir-se. Inexistir-se.

Carlos Cruz - 09/07/2008

* Ilustração: "The Bath" de Fernando Botero.

domingo, 6 de julho de 2008

Penosa Paixão



Era uma vez Jorge Ferrão, um indivíduo da espécie dita humana, do tipo tremendamente malvisto por ser afeito àquilo que virou moda execrar à boca grande: macheza. Sim, um espécime macho da espécie que não mais admitia o uso público e notório de tal designativo, relegado às distantes e jecevaladanianas décadas de setenta e oitenta. O mundo, virado do avesso como estava, à vista de tão hedionda aberração, não tardou a virar-lhe a cara, as costas e, por vezes, a lançar torpedos escarratórios ao chão à sua passagem. Não que o mundo dotado fosse de cara, costas e sistema produtor de catarro, já que aqui me refiro a seus ilustres, preeminentes, ínclitos, conspícuos e - por que não dizer? - nobilíssimos habitantes, defensores ferrenhos dos valores basilares da moral, dos bons costumes e, em especial, do que se convencionou chamar de "o politicamente correto" ou "A Nova Ordem". O fato é que Jorge Ferrão, ou apenas Ferrão ou Ferrabrás, como era mais conhecido, era macho até a raiz dos cabelos, macho à moda antiga, como gostava de alardear quando degustava seus pés de galinha regados a cachaça no Bar do Tião, cabeça-de-bode cuja freguesia era composta basicamente pelos integrantes da classe "ralé", também denominados párias, indivíduos considerados "lixo irreciclável" pela classe dominante: a "magna" ou os neoaristocratas. Jorge não estava nem aí nem aqui nem acolá: coçava o saco, visivelmente e despudoradamente, a cada dois minutos. Via uma mulher atraente, mandava logo um "gostosa!". Brigava por qualquer motivo com qualquer um. Ria-se e pilheriava, troçando dos que repreendiam seu comportamento com palavras ou olhares reprovadores. Referia-se a eles como os "BBB" - bando de babacas boçais. Jorge "Ferrabrás" Ferrão era o último dos machões do século XXI.
Mas o que poucos sabiam é que Ferrão, lá no fundo, nos recônditos penumbrosos e secretíssimos de sua alma-espírito, escondia algo que poria todo seu auto-cultivado, auto-cultuado e auto-estimado prestígio a perder: apreciava Bossa Nova. É isso aí: Jorge, o Ferrabrás, era fã de Vinícius, Jobim, João Gilberto e Cia. Mandara forrar as paredes de seu quarto com uma grossa camada de cortiça para não correr o risco de ser flagrado por algum vizinho mexeriqueiro enquanto imerso estivesse em seu musical e muito particular êxtase. Jorge era um paradoxo ambulante. Jorge, indubitavelmente, e a despeito das opiniões contrárias, era humano, bastante humano.
Certo dia, Jorge caminhava a passos largos com destino ao retromalfalado botequim, quando deparou-se, numa curva da estrada, com aquela que seria a razão de sua perdição: a galinha. Sua visão turvou-se, sua face enrubesceu-se, seu corpo acalorou-se, seu coração palpitou-se: o que fora não mais era, era a mais nova vítima da frechada do Cupido. Lá estava ela, linda, deslumbrante, com seu ar altivo, sua crista carnuda encarnada, suas belas penas negras-brilhantes, seu pequeno bico amarelo. Jorge estava apaixonado. Apressuradamente, tratou de arrebatar e levar para sua casa a nova e penosa dona de seu coração. Deu-lhe o milho mais caro que achou no mercado, a melhor água mineral, trocou os travesseiros de penas por outros, sintéticos. Chamou-a Efigênia – gostava desse nome e, ao que parece, ela também gostou pois cacarejou e olhou para Jorge. Tratou-a como uma deusa, uma rainha, mas não fizeram sexo. Tinha receio de estuporá-la considerando as desiguais dimensões de seus órgãos genitais. Jorge, enfim, era um homem plenamente feliz, feliz e transformado: não mais coçava o saco, não mais cantava as mulheres na rua, não mais freqüentava o Bar do Tião. Vivia para Efigênia, para agradar Efigênia, para amar Efigênia.
Entretanto (sempre tem que ter um entretanto, contudo, mas, todavia ou porém), alheia a todos os mimos e agrados do (pensava ele) amado, certo dia anuvioso-chuviscoso, Efigênia bateu asas e voou não se sabe para onde nem por quê. Perplexo, Ferrão a procurou em todos os cômodos, em todos os cantos e recantos internos e externos da casa. Nada de Efigênia. Ela partira, fugira, escafedera-se. “Aquela ingrata. Depois de tudo que fiz por ela, depois de tudo que vivemos juntos...” Ferrabrás pensou em traição, seqüestro, estupro, assassinato, abdução, migração e, por fim, conformou-se com a hipótese do nada simples, nada puro e todo doloroso abandono. Já a refletir viagens de vira-e-revira-mundo e idéias suicidas, eis que ouve um ruflar de asas advindo da janela da sala. Volveu os olhos na direção do ruído e foi tomado novamente pelo êxtase, desta feita, mais intenso: lá estava sua amada, adorada e idolatrada Efigênia, em carne, ossos, bico e penas. Correu a abraça-la, quase esquecendo-se da fragilidade do corpo da galinácea. “Meu amor, você voltou! Onde você estava, por onde andou, digo, voou?” – dava beijos e mais beijos. A galinha retrucou com regulares e breves cacarejares. Jorge não pensou, agiu: trancou todas as janelas e portas, depositou suavemente Efigênia na cama, acendeu o fogão e colocou o caldeirão com água para ferver. Quando a água borbulhou e começou a evaporar, com lágrimas nos olhos, pegou delicadamente Efigênia, olhou fixamente para seus olhos ariscos e disse: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim.” Afundou-a no caldeirão e tampou, segurando com toda a força, as lágrimas a gotejar e vaporizar tamborilando sobre a tampa. A agitação no interior da grande panela foi breve. Foi o melhor jantar da vida de Jorge Ferrão, jantar à luz de velas. Doravante, ele e sua amada Efigênia jamais se separariam novamente, estavam juntos, fundidos, seriam um só, eternamente.

Carlos Cruz - 23/05/2008