segunda-feira, 19 de novembro de 2018

crônicas policiais VI - vida loka, vida breve




a guarnição da Polícia Militar apresenta o cidadão, sujo e maltrapilho, com uma mochila ao redor da qual esvoaça um enxame de moscas. consultaram o Banco Nacional de Mandados de Prisão e consta um mandado pendente em desfavor do andarilho, condenado a três anos por roubo perpetrado na cidade de Divinópolis-MG.


o cara tem cara de maluco, aqueles olhos permanentemente arregalados com movimentos esgazeados e fala pelos cotovelos.



acautelamo-lo educadamente na cela, após a revista de praxe com a remoção de cinto, cadarço, objetos de metal e tudo o mais que possa ser utilizado para autolesão e/ou tentativa de transformar o xadrez em túmulo.



eu e o colega de plantão voltamos aos nossos afazeres, chamando os próximos da fila que aguardam atendimento e desejam ardentemente que a polícia os ajude a resolver seus problemas, ainda que nem sempre a polícia tenha poderes para ajudá-los a resolver seus problemas.



a fila anda e chegam guardas municipais com outro cidadão algemado, preso em flagrante por furto do celular de uma transeunte. levamos o ladrão, que se desfaz em lágrimas, para o xadrez. durante o check-in, ele diz que faz tratamento psiquiátrico e toma trocentos medicamentos controlados, haldol, diazepan, gardenal, etc. a cadeia está cheia e temos de colocá-lo junto com o doido. quem sabe os dois malucos não tenham assuntos em comum a tratar?



o colega abre a cela e o primeiro maluco come o segundo no esporro:

"que porra é essa? tu é maluco, mermão? é mão pra trás e cabeça baixa! é sim senhor, não senhor! cadê a disciplina, caralho? agora é regime militar! vem pra cá que vou te ensinar! começa pagando vinte! vou te ajudar, vamolá."


fecho a porta na décima flexão dos dois e penso: é, não fosse criminoso, esse maluco poderia ajudar a mudar isso tudo que taí.

domingo, 4 de novembro de 2018

Crônicas Policiais V - A Vida Como Ela Não Deveria Ser



Há mais de vinte anos, época em que ainda era funcionário da MRS Logística, conheci um adolescente que estagiava no meu local de trabalho. Franzino, baixinho, rosto repleto de espinhas, retraído, tom de fala baixo, sempre de olho nos pés do interlocutor, um poço de timidez e introspecção. Estagiário em seção diversa daquela em que eu trabalhava, tivemos tão só contatos eventuais em função de trabalharmos no mesmo local.


O tempo passa, eu me caso, me mudo de um lado para o outro e, enfim, compro uma casa financiada em 360 meses pela CEF e finco pé.



A empresa atravessa um período de crise e as demissões são frequentes. Meu filho nasceu há poucos meses e todo dia sou forçado a controlar a apreensão de ver meu nome encabeçando a lista dos cabeças-cortadas. Um belo dia, ao sair de um pernoite no qual soube que mais três – bons – funcionários haviam sido ceifados, decido agir. Inscrevo-me em um concurso para Inspetor da Gloriosa Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.



Faço a prova objetiva, passo. Faço o exame psicotécnico no Rio de Janeiro; na saída do exame esbarro com o moço espinhento. Trocamos algumas palavras sobre o concurso, logicamente, e fica nisso.



Passo na porra toda mas não sou classificado nas vagas. Torno-me um excedente. Eu e mais uns mil e poucos candidatos. Fico decepcionado mas - fazer o quê - vida de concurseiro é isso. Os dias passam e fico sabendo que uma comissão foi formada dentre a galera que sobrou pra tentar nosso aproveitamento com base em uma lei estadual que prevê um efetivo de vinte e poucos mil policiais civis e a Gloriosa só contava com pouco mais de dez mil. Me animo: ainda resta um filete de esperança. Em contato com a tal comissão descubro que, além de mim, há mais dois em minha cidade na mesma situação de aprovado pero no classificado, um deles é o ex-estagiário.



Sondo e fico sabendo ainda mais: o cara mora a poucos metros da minha casa, somos praticamente vizinhos. A partir daí, estabelecemos um contato frequente por conta do interesse comum.



Os excedentes do concurso, representados pela comissão, alcançamos algumas vitórias, paulatinamente: alteração da validade do concurso, convocação para o curso na acadepol. Decido meter o pé do antigo mister, embora saiba que tal decisão é assaz temerária: nada é líquido nem tampouco certo.



Alugo um apartamento no Rio junto com outro candidato da minha cidade para fazermos o curso. Convidamos o franzino mas ele declina: quedar-se-á em casa de parentes, sai mais barato, a despeito da distância maior que teria de percorrer diariamente.
Fazemos o curso, as provas, passamos, tamos dentro. Sou lotado num canto, ele noutro. A vida corre, o tempo passa e chegam as notícias: o amigo tá fazendo um monte de coisa errada, também chamadas de “merda atrás de merda”. Repudio, refuto as notícias, taxando-as de maledicência: não, não existe a menor possibilidade de que aquele menino mocorongo, todo retraimento, esteja se dedicando a tais práticas reprováveis.



Tempos depois, mais notícia ruim: o cara foi preso. Caralho! Não pode ser! Mas, é.



Os meses passam e, certo dia, esbarro com o caboclo na pista.
E aí, beleza?
Tranquilo.
E aí, tá trabalhando onde?
Ainda tô de molho. Aqueles filhos da puta me foderam, não fiz porra nenhuma de errado!
É foda. Infelizmente todos estamos sujeitos a isso. (Penso: todos uma ova! Eu é que não me meto em furada! Antes endividado que demitido e preso!)
É.
Então fica assim. Vou indo nessa.
Valeu.
Valeu, brow. Fica com Jesus.



Muitos sóis sobem e descem e, com um deles a pino, recebo a notícia mais pior de ruim: o colega assassinou a esposa, crivou-a de projéteis, encheu-a de chumbo, enviou-a a contragosto e sem escalas para a terra dos pés juntos. Qual das vezes outras, desta feita com mais ênfase, dou vazão à minha incredulidade: “o Fulano?!?! Não, não posso acreditar nisso!!!” Mas era à vera. Após matar o cônjuge virago, tentara fugir, mas fora capturado, preso em flagrante por homicídio qualificado.



O tempo é a borracha da memória. Passam-se os anos, vou de uma delegacia para outra e paro na de minha cidade natal.



A noite é atípica: a delegacia, quase sempre com fila de espera, está vazia. Bato um papo descontraído com o colega do plantão – coisa que há tempos não fazemos. Vejo a luz de um giroflex que se aproxima. A viatura do SOE – o serviço de transporte de presos – para. “Lá vem preso pra depor amanhã.” – falo para o colega do plantão. Os agentes abrem a porta traseira, um único preso desembarca, com a característica camisa de malha branca. Vêm se aproximando e reconheço o ex-colega franzino, baixinho, rosto repleto de espinhas, retraído e que falava baixo. Outro preso, mais um preso, um preso como outro qualquer. Quando me vê, esboça um sorriso, estende a mão direita algemada à outra e diz: “André! E aí?”. Ao ouvir o nome pelo qual somente meus pais, irmãos, tios e primos me tratam, vindo de um preso do sistema, levo alguns segundos para estender a mão e apertar a dele, bate uma confusão na cachola de policial civil com quinze anos de profissão. Dirigimo-nos ao cárcere, o preso escoltado pelos agentes da SEAP, a Secretaria de Administração Penitenciária. Ele calça tênis. Não pode entrar com eles por conta dos cadarços (presos, quando querem se matar, usam até a própria camisa). Peço para tirá-los e calçar um par de chinelos que algum outro prisioneiro deixou para trás. Ele me olha com cara de “pô, André, fala sério!” mas nada diz e faz o que pedi. Entra na cela, bato a pesada porta de aço e tranco o cadeado.



Os agentes se vão e eu fico com meus pensamentos. Bate “um ruim”, um incômodo chato que só posso definir como tristeza. Estou triste por ver o antigo amigo que nem era tão amigo assim – nunca bebemos nem conversamos amenidades em um botequim qualquer juntos – naquela deprimente situação. É a última noite do plantão, noite que custa a passar.



Puta que pariu, cara, que merda é essa que você fez com a sua vida?



Pela manhã, ele pede um banho. Não quer encarar o Tribunal do Júri fedendo. Peço ao colega do plantão que atenda ao pedido. Não quero contato porque não quero vê-lo porque quando o vejo enxergo um monstro saído do lodo das minhas memórias, um ser humano disforme feito de várias caras, umas boas, outras ruins, cuja visão me faz mal. Sinto-me um pouco culpado por isso. Mas, foda-se. Quem fez merda não fui eu.



O plantão termina, graças a Deus. Volto pra casa e o cara vai pro fórum. Não sei a sentença nem quero saber. Quero beber minhas cervejas e fumar meus cigarros e ler meus livros e ver meus filmes e beijar e amar minha esposa. Aproveitar minha folga porque outro plantão vem aí e não demora a chegar.



Continuo achando que ganho mal pra fazer o que faço. E que não existe bicho mais esquisito e imprevisível que o ser humano.



Que merda.
Carlos Cruz

sábado, 3 de novembro de 2018

Crônicas Policiais IV - arma de fogo para quem precisa



há alguns anos, estava eu de plantão na Delegacia, quando para uma viatura da Polícia Militar da qual desembarcam dois policiais, um senhor e uma criança.
o senhor, de aparência muito simples, reunia no rosto banhado em lágrimas a expressão de sofrimento de mil homens torturados.
a criança, um menino de seis anos também de aparência humilde e também chorando a cântaros, estava assustado e confuso.
um dos policiais, que trazia consigo uma espingarda de um cano, calibre 28, muito antiga, gasta e enferrujada, narrou-me o ocorrido: aquele senhor devastado ali na minha frente, um lavrador cuja esposa falecera de um câncer há alguns meses, era o proprietário daquela arma de fogo, herança de seu avô, que na maior parte do tempo ficava guardada sobre o guarda-roupas no seu quarto. vez ou outra, ele a usava para afugentar alguns animais da lavoura.
um belo dia, o filho o vê retirar a arma do local de guarda. após o óbito da matriarca, o pai, ao sair para a lida, deixava as crianças - eram dois meninos, o menor tinha cinco anos de idade - com uma vizinha.
acontece que, naquele dia, a vizinha precisou sair e não pôde ficar com os pequenos. o pai não podia deixar de ir ao trabalho sob pena de perder o emprego, o local era distante e seria bastante difícil levar os moleques na bicicleta. decidiu deixá-los algumas horas a sós, a vizinha retornaria na hora do almoço.
o pai saiu. o menino maior lembrou-se de onde o pai guardava a espingarda e propôs ao irmãozinho brincarem de polícia e ladrão. é claro que o menor topou. arrastaram uma cadeira, sobre a qual colocaram um banco e o mais velho conseguiu alcançar a arma longa.
a brincadeira durou muito pouco. o mais velho, que obviamente era o polícia, matou o bandido com um tiro no peito, direto no coração, o pequeno coração do seu irmão mais novo, seu único irmão. não pulou de júbilo nem gritou de alegria junto ao irmão, a reinação acabara em uma poça de sangue. o menino correu desesperado em busca de ajuda, pois telefone na zona rural é artigo de luxo e a habitação mais próxima ficava a mais de um quilômetro. mas foi vão, o irmão já partira para o planeta dos anjos, em uma nuvem de fumaça com odor de carvão, salitre e enxofre.
estavam ali na minha frente, aguardando meu bater de teclas, aquela família destroçada por balins de chumbo. o Delegado, humanamente, não me mandou autuar o pai em flagrante pela posse ilegal de arma de fogo de uso permitido. enquanto fazia meu trabalho, também fiz o que sempre faço embora não deva fazer: pus-me no lugar do pai. na época meu filho tinha a mesma idade do menino mais velho. na verdade, não me pus no lugar dele porque é impossível absorver, sentir ou mesmo sondar a dor de um pai que perde um filho nessas circunstâncias. ao mesmo tempo em que se arrepende de não haver se desfeito da arma, se autoflagela por sua imprudência em deixá-la carregada, pensa em tirar a própria vida mas sabe que isso não fará o tempo retroceder nem trará de volta o sorriso do seu filho. terminei meu trabalho, pai e filho foram velar a criança morta e eu fiquei com meus pensamentos e meu coração apertado. outro "cavaco do ofício" difícil de suportar e extrair. na folga seguinte, a primeira coisa que fiz ao entrar em casa foi descarregar minha pistola, desmuniciar os carregadores e guardar arma, carregadores e projetis em esconderijos bem distantes um do outro.
quando vejo todo esse iê-iê-iê em torno da revogação ou abrandamento da Lei 10.826/03, o Estatuto do Desarmamento, sempre me lembro dos rostos daquele pai e daquele menino, para sempre destruídos por um tiro de espingarda. armar o cidadão de bem, será mesmo essa a solução para nossos problemas de segurança?
"porra, Cruz, mas esse é um caso em dez mil!"
tá certo, irmão, tá certíssimo. mas, reflitamos juntos: se liberar a posse e/ou porte de arma de fogo pra geral, aumentam também o número de gente armada e gente, você sabe, cada um é diferente, logo, aumentará também o número de imprudentes e os acidentes e os pais e mães e filhos e tias e tios e sobrinhos pranteando seus entes queridos mortos, a matemática é pura, aplicada e má.
cada caso é um caso mas, a meu ver, possuir arma de fogo é uma solução de dois canos alternados: um aponta para o vagabundo, o outro para o cidadão.