segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A Vingança de Noel



Durante onze meses suportava, resignado, as pedras na vidraça, os xingamentos, as cruéis e pueris provocações dos filhos de seus vizinhos. Dava o troco no último mês do ano quando, travestido de velhinho bom, prometia presentes que - sabia - eles jamais ganhariam.

Carlos Cruz - 12/12/2007

Adrenalina, Porcos, Vacas, Tropa de Elite e Baixo Salário



"Quem diria... O André, mocorongo do jeito que é, virou polícia..." O comentário, feito por meu genitor quando soube de meu ingresso na gloriosa PCERJ, deixou-me um tanto frustrado. Afinal, sei que sempre fui um poço de paciência e insuportavelmente calmo, mas mocorongo? Não encontrei o termo no Aurélio. Procurei na Rede. Segundo a definição do dicionário informal, mocorongo significa idiota, tolo, burro, estranho, esquisito, diferente e está relacionado às palavras mané, bocó, trouxa, otário, besta, estranho, esquisito, diferente. Em suma, mocorongo é um adjetivo quase insultuoso. Mas sei que meu pai não teve a intenção de me insultar. Referia-se a meu jeito "devagar" de ser.
Todavia, meu objetivo, ao empreender essa tentativa de escrever uma crônica, nada tem de filológico, etimológico ou morfológico. Quero vencer minha resistência em falar sobre minha profissão. Sempre evitei falar no assunto. Escrever então, nem pensar. Talvez devido a um "recalque" arraigado em meu cérebro, proveniente das leituras acerca dos desmandos da ditadura militar, SNI, DOI-CODI, AI-5 e o escambau; talvez por excesso de punk rock; talvez por não aceitar haver sido vencido pelo sistema, a ponto de fazer parte dele em detrimento de minhas pretensões poético-musicais-artísticas da adolescência. Talvez. O fato é que decidi regurgitar minha opinião, por mais exdrúxula e estapafúrdia que ela seja, animado pela repercussão positiva do sangrento filme Tropa de Elite. Por mais violenta que seja, a saga do Capitão Nascimento e seus comandados desencadeou uma onda de simpatia dos cidadãos pela Polícia. De repente, o policial que antes era taxado de corrupto, truculento, perverso, tornou-se o paladino da Justiça, o defensor dos fracos e oprimidos, pronto para dar sua vida, mesmo recebendo um salário de fome no final do mês, na guerra contra os cruéis e impiedosos traficantes, os vagabundos sem alma. Tenho de confessar que fiquei arrepiado ao final do filme. Ouvi muitas histórias de colegas que foram barbaramente torturados e queimados vivos no tal "microondas".
Não me envergonho de dizer: estou na Polícia Civil por acaso. Trabalhei durante muitos anos na Rede Ferroviária Federal, feliz e satisfeito em minha função de artífice metalúrgico. É. Eu era um "peão", como costumam chamar aqueles que trabalham "na graxa". Só que sobreveio o governo Collor e com ele as privatizações das estatais. Alguns anos e centenas de funcionários demitidos depois, percebi que minha vez estava chegando. Tomei uma decisão: faria algum concurso público. Tinha família para sustentar, não podia ficar à deriva, à mercê das cotenções de despesas para agradar os acionistas. Comprei a Folha Dirigida e tava lá: concurso para inspetor de polícia. "Polícia?" - pensei. "Polícia não dá. Isso vai contra minhas convicções anarco-comunistas." Lembrei das leituras, das torturas, da repressão, da fase punk, do 'Fuck the Police'. Mas, daí, lembrei de meu filho que ia completar um ano de idade e precisava de leite e fraldas, precisava do papai para prover o sustento pois mamãe não trabalhava. Foi mais forte. Muito mais. Meus arroubos anarco-punk-ideológicos foram sobrepujados por aquele pequenino. Fiz o concurso, passei, entrei na instituição, acautelei arma e distintivo. Optei por trabalhar no interior. Não tinha pique para subir favela no Rio, sempre odiei exercícios físicos e fumo demais.
Na primeira semana no plantão da delegacia, lavrei meu primeiro flagrante. Furto de porco. Isso mesmo. Furto de porco. Os meliantes (no policês) entraram no chiqueiro que ficava no quintal da casa do cara e, munidos de uma afiada faca de açougueiro, assassinaram e destrincharam o pobre e indefeso animal que o proprietário estava engordando para o Natal, transportando-o para casa num carrinho-de-mão. Como diz o aforismo, não existe crime perfeito. O deles não foi diferente: em virtude da escuridão noturna, não perceberam que o sangue do suíno havia deixado um rastro no chão que terminava na porta da residência deles. O lesado só teve o trabalho de seguir e chamar a PM. Os três foram presos e o porco fatiado apreendido e entregue ao dono. Segundo o colega plantonista, bastava eles alegarem motivo famélico que o Juiz soltá-los-ia. Furtaram para comer.
Com o tempo, comecei a gostar do que fazia. A cada vinte ou trinta ocorrências maçantes, do tipo furto de celular, briga de vizinhos, atropelamento de vaca, ameaça, aparecia uma interessante. Como aquele estupro. O elemento (policês, de novo) agarrou a moça num local escuro, lutaram, ela feriu o rosto em uma cerca de arame farpado, disse que tinha AIDS, mas não houve argumento que demovesse o cara: o estupro aconteceu. Investigações iniciadas, recebemos um informe - denúncia anônima - de que o estuprador vivia com o pai-de-santo X.. Eu e um colega fomos até lá e qual não foi nossa surpresa quando o religioso, ao inteirar-se da denúncia, fez cara de espanto e disse:
- Olha, eu não sei de nada não. Mas meu santo de cabeça, Dona Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, sabe. Peço que esperem. Vou incorporá-la e aí vocês conversam com ela.
Entramos no jogo. O pai-de-santo fez lá a mandinga dele e, até prova em contrário, incorporou a tal entidade. Ela, com aquele linguajar característico, disse que estava muito triste com o que estava acontecendo em sua casa. Seu filho tinha enveredado por um caminho torto. Ia nos ajudar. Escreveria um bilhete que deveria ser entregue às mãos de um cabeleireiro, cujo salão situava-se em outra cidade. Fomos até lá. O cabeleireiro, após ler o bilhete, desmunhecadamente apontou o criminoso. Prendêmo-lo. No trajeto para a DP, ainda na viatura, ele confessou que tinha fugido de um município vizinho, onde havia assassinado a mulher e a sogra.
A profissão tem seus momentos bons. A satisfação do lesado quando recuperamos e restituímos um bem subtraído. O alívio dos familiares quando resgatamos um seqüestrado. Isso dá um certo orgulho e me faz lembrar de outra situação, digamos, insólita: uma senhora idosa, bastante nervosa, entra na DP e diz que está sendo ameaçada por um homem, que telefonava a cobrar para sua casa e sabia tudo sobre ela e sua família. Mostra a conta e o número do celular. Sabia que se fosse conduzir a investigação pelos trâmites convencionais - redigir informação para o delegado acerca da necessidade de representação ao Juiz pela quebra de sigilo de dados referente à tal linha de telefone; elaboração, pela Autoridade Policial da representação; encaminhar a representação para o fórum; aguardar deferimento do MM. Juiz; remeter decisão para a operadora de telefonia; aguardar resposta da operadora - levaria meses. Decidi agir. Telefonei para o número. O cara atendeu.
- Alô.
- Bom dia, caro amigo. Meu nome é Asdrúbal, sou operador do setor de atendimento ao cliente das Lojas Ponto Frio e tenho a grata satisfação de lhe informar que você foi sorteado dentre milhares de candidatos para participar de nossa promoção "Semp-Toshiba, Ponto Frio e Você, Tudo a Ver". Você estará tendo a oportunidade de concorrer a um televisor Semp-Toshiba, modelo C-290, de vinte e nove polegadas, que será entregue em sua residência, sem despesa alguma, bastando que para isso responda a uma simples pergunta. - falei, sem respirar e sem dar tempo de o cara pensar. - Qual a melhor loja de eletro-eletrônicos do Brasil?
- Ponto Frio! - o cara mandou, na lata.
- Parabéns, caro amigo! Você acaba de se tornar o feliz proprietário de um televisor de vinte e nove polegadas Semp-Toshiba. Agora, preciso de seus dados para a entrega do aparelho.
- Mas eu não vou pagar nada não?
- Absolutamente. Todas as despesas são por conta do Ponto Frio. Qual seu nome e endereço?
O cara passou tudo: nome, endereço, telefone, RG, CPF, nome do pai, da mãe, número do sapato, cor preferida, time do coração... Esperou uma televisão, recebeu uma intimação. A senhora idosa não foi mais importunada e, é claro, ficou muito satisfeita com a eficiência da polícia. Passou a reclamar menos na hora de pagar seus impostos.
Embora tenha passado a apreciar meu trabalho, não sei por quanto tempo permanecerei. O problema é o salário. Baixo demais para a atividade desempenhada e o risco que ela envolve. Ademais, a vagabundagem não vai parar de atirar. Tiros de fuzil. Fazem um tremendo estrago. O mundo vai continuar sendo um mundo-cão cheio de gente que tem medo e gente que mete medo. Já cantava Raul: "Durango Kid só existe no gibi, e quem quiser que fique aqui, entrar pra história é com vocês." Fico com ele.

Carlos Cruz - 12/12/2007

sábado, 8 de dezembro de 2007

O Desafio do Abecedário Xifópago ou A Fabulosa Fábula da Cadeia Alimentar Onírica Sem Pontos na Disneylândia Zoológica Fantástica do Sapo Cururu



Ávida a víbora venenosa devora o sapo cáustico leitoso e a leptospirótica ratazanA

Balem incautas ovelhas inadvertidas cobiçadas por salivantes lobos na fazenda do semita CaleB

Canoros passeriformes esvoaçam na nuvem cinza de partículas poluentes acima da torre do gigantesco relógio que faz tic-taC

Dromedários digladiam com camelos porque os camelos faziam troça dos dromedários em razão de os dromedários possuirem apenas uma corcova deixando a pé os agentes legionários da MossaD

Esquilos fofos fazem pilhas de nozes castanhas e avelãs nos buracos dos pinheiros precavendo-se da escassez invernal na América do NortE

Falcões empreendem vôos rasantes em tocas de timões sem pumba saltitantes com voz estridente situadas na floresta florida que tem uma casa de madeira cujo mobiliário inclui um alaranjado pufF

Golfinhos Flíper produzem um barulho chato sôfregos por peixe morto fedorento nadando em festivo e besta zig-zaG

Hordas de esquimós deixam seus iglus em trenós tracionados por cães em desabalada fuga dos invasores egípcios comandados pelo deus Donald TotH

Iracundos pombos-correio grevistas arrulham impropérios e palavras de ordem exigindo melhores salários condições de trabalho tíquetes-refeição vales-transporte e planos de saúde para a família e para sI

Joaninhas macho tocam clarinete na banda das moscas varejudas antes de serem subjugados, imobilizados e sugados pela aranha caranguejuda fêmea oriunda das plagas orientais regidas pelo Xá da Pérsia cujas lágrimas profusas banham o cadáver mumificado de sua amada Mumtaz Mahal e erigem o TaJ

Kriptoníticos donuts arranham a laringe do patético Pateta sedento de amores e paixões tórridas ansioso por comer a ruminante e bela Clarabela a bordo da nave-mãe comandada pelo Capitão KirK

Lhamas alpinistas em litúrgica romaria escalam o Monte Aconcágua no pico do qual imolam-se em sacrifício aos deuses astecas liderados por Huitzlopochtli tendo à destra seu ajudante-de-ordens o Supremo Deus SoL

Macacos-prego arriscam-se em divertidas macaquices acrobáticas alheios a seu australopitecínio futuro e aos tigres-de-bengala que lambem os beiços, afiam os caninos e com os olhos torcem e derrubaM

Ninfas diminutas providas de asas zumbem zombeteiras zombando do Capitão Gancho engolido devorado e deglutido pelo Crocodilo verde gigante Tic Tac que saciado queda-se parado entrando em alfa e ficando zeN

Ornitorrincos pestanejam sua aparência bizarra enquanto botam ovos dão de mamar e fazem qüem-qüem sem ninguém para levá-los ao circo dos horrores a Patópolis a Teresópolis a Petrópolis ou ao observatório astronômicO

Pirilampos piscam-piscam as lanternas de suas bundas apesar das admoestações do Mago Mickey Merlim que vaticina o seu trágico fim no papo dos pardais impiedosos regados a mostarda e catchuP

Quiromantes elásticas prognosticam o fatídico embate entre a matilha de leões garbosos e a choldra de hienas malandras protagonizado por Simba o leãozinho marujo e o famigerado e traiçoeiro Ska Iscariotes nas pradarias da ilha de Madagascar resultando na vertiginosa queda da bolsa NasdaQ

Rinocerontes aplicam-se com disciplina extremada à dieta imposta pelos nutricionistas do Ibama degustando apenas uma folha de alface e uma rodela de tomate por dia malhando na esteira e na bicicleta ergométrica mordendo-se de inveja dos desprezíveis hipopótamos rosas de saias de bailarina que não param de rodar e rodar e engordaR

Sinfônicos albatrozes disputam ferozmente os acepipes gélidos com os pingüins de geladeira engravatados as focas que querem bola batendo palmas os leões leôncios e os elefantes mamutes marinhos no litoral iceberguiano do oceano glacial ártico donde todo final de ano o meliante Santa Klaus conhecido vulgarmente pelo cognome Papai Noel Filho da Puta Porco Capitalista açoita hediondos duendes verdes que embrulham alucinadamente com papéis coloridos milhares de aparelhos de MP3 notebooks e Playstations 5 para presentar os ricos e envelopam com papel jornal cartões baratos da Unicef acompanhados de cuspe para os filhos bastardos dos miseráveiS

Tamanduás-bandeira metem a nareba em formigueiros destruídos pelos irmãos Metralha que evadiram-se do local perseguidos pela carrocinha da SWAT

Uniformizados urubus-rei marcham contra a fortaleza inexpugnável onde abrigam-se os três porquinhos rosa com bacon e costelinha acebolada defendida por rapunzel a tirana flatulenta e sua obediente cobra surucucU

Volumosas lombrigas deflagram ataques fulminantes contra o império das tênias quilométricas que agarram-se de forma mordaz às paredes do intestino grosso com suas ventosas intensificando o apetite do cachorro Pluto que come e bebe e embriaga-se necessitando tratar-se terapeuticamente com várias cápsulas de EngoV

Whiskas alimenta os gatos que não gostam de Whiskas preferindo ratos passarinhos e contos porno-eróticos de WiskoW

Xilofones ressoam ante o advento da família incrível que banqueteia-se com frango assado ao som de Charlie Parker ao saX

Yankees disputam a pequena bola com Martin Luther King Pernalonga Tico Teco Ronaldinho Gaguinho e Patolino enquanto os megafones gritam os primeiros acordes de Lucy in the skY

Zarabatanas zunem no ouvido do rei Régis Rex O Estróina que joga xadrez envergando um belo e pavonesco manto xadreZ

Carlos Cruz – 02/12/2007