sábado, 15 de março de 2008

O Piedoso



Furou os olhos com o aguilhão em brasa, pacientemente aquecido na chama do pequeno maçarico. Para os tímpanos, usou longas e finíssimas agulhas de aço inoxidável. Amputou o pênis, o saco escrotal, as mãos, os pés. Deixou a língua por último, gostava de ouvir os gritos. Apontou a reluzente Glock 9 mm para a cabeça da agonizante vítima, premiu o gatilho, uma, duas vezes. Durante alguns minutos, ficou ali, estático, olhando para o cadáver. Suspirou. Era a primeira vez que descumpria uma cláusula contratual. O cliente havia sido enfático: “Quero que o filho da puta sofra, que sangre até morrer.” “Mas que merda! Estarei amolecendo?”, pensou. Precisava, a qualquer custo, preservar sua reputação, adquirida em anos de sacrifício e dedicação à profissão. Seguiu até à casa do cliente, que o recebeu, ansioso: “E aí, está feito? Ele sofreu? Gritou? Implorou por sua vida? Sangrou até morrer? Conte-me tudo, quero detalhes!” Volveu a arma na direção do cliente, um tiro certeiro, à queima-roupa, no centro da testa. Era um paradoxo: matava homens, velhos, mulheres, crianças, mas era absolutamente incapaz de mentir. “Não. Não sangrou até a morte. Matei-o antes. Tive pena.” Saiu da casa. Antes de amassar e jogar fora o folheto entregue pela sorridente menina de saia comprida e cabelos cacheados, leu, uma vez mais, a mensagem nele impressa: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.”

Carlos Cruz – 06/03/08