terça-feira, 24 de setembro de 2019

Crônicas Policiais VIII - Punisher



Daí você tá de boas trabalhando e recebe um vídeo no whatsapp cuja imagem inicial é de um homem branco, nu, ensanguentado, aparentando uns trinta anos, forte do tipo trabalhador rural, deitado em decúbito dorsal com as pernas abertas, tendo um pitbull a poucos centímetros de sua virilha. O cenário é rural e, em volta do homem caído, uns cinco ou seis homens trajando jeans, camisas xadrez e botas Zebu.
Daí você pensa em deletar, como sempre faz com vídeos dessa natureza, mas a legenda lhe chama a atenção: "Estuprador", assim, sem ponto, sem nenhuma outra sentença que pudesse tentar justificar minimamente a sentença grotesca e cruel que viria a seguir.
Respirei fundo e premi o play. Como já previa, o pitbull atacava o homem, que já não possuía mais pênis nem saco escrotal, o cão os devorara. Ainda assim - talvez em prol do curta-metragem dantesco - o cachorro seguia mordendo e puxando e comendo pele e músculos, enquanto o homem, cujas pernas eram seguras sem muita força por dois "atores", gritava, gritava e gritava, também sem muita força sonora.
Junto com o arrependimento por haver "aberto" o vídeo (sou aficionado por filmes trash, especialmente splatter gore, mas quando a coisa é real, no me gusta ni un poco), vêm à mente, inexoravelmente e à revelia da minha vontade, os diversos casos em que atendi ao longo dos meus dezesseis, quase dezessete, anos de policial civil.
Mas, e se aquele torturado do vídeo fosse aquele cara que foi acusado de estupro pela amante porque ele não quis largar a família e colar com ela?
Mas, e se aquele infeliz do vídeo fosse aquele senhor que foi acusado pela companheira e pela sogra de ter estuprado os filhos porque a companheira tinha um amante e a sogra não gostava do genro e queria que a filha o substituísse por outro que lhe proporcionasse carro e casa boa?
Mas, e se aquele "castrati" do famigerado videozinho de whatsapp fosse aquele peão daquela fazenda que foi pego no ato com a patroa que, pra se safar, disse que ele a estava estuprando?
Mas, e se aquele desgraçado pelado com o sexo devorado pelo cachorro fosse aquele cabra que deu uma carona para a evangélica que chupou gostoso o pau dele mas, ao ser questionada pelos pais onde estava até aquela hora, acusou o cara de estupro pra não ser crucificada pelos parentes e escapar imaculada do fogo do inferno?
Opa! Antes que alguém, com o cenho franzido, me pergunte: sim, já atendi e registrei e investiguei dezenas de estupros que realmente se tratavam de estupros, com autores indiciados, presos e processados por seus crimes na mais estrita dura lex, sed lex.
Mas... Lex!, sempre dentro da Lei, branda para uns, rigorosa para outros.
Gosto daquele personagem Justiceiro, da Marvel. Primeiro, porque é um personagem fictício; segundo, porque ele só vai na boa, o criminoso é um criminoso cruel e sanguinário sem a menor sombra de dúvida.
Contudo, no mundo real não é assim. Há que se seguir à risca o devido processo legal. Há a investigação. Há a juntada de provas. Há o julgamento. Há o contraditório e a ampla defesa. Há a sentença. E o cumprimento da pena. É o melhor sistema? Sei lá. Mas é o que temos. Fora isso, temos a barbárie, o homem nu, o homem deitado com as pernas pra cima, o homem com o saco e o pênis devorado pelo cão faminto.
Temos também o dono do cão e seus amigos, todos cidadãos de bem que vão à missa ou ao culto e entoam louvores para honra e glória do nome do Senhor.
Recebi o mesmo vídeo cine trash do mundo real atual em vários outros grupos. Impossível identificar a origem face à disseminação. Tecla del geral e duas certezas: tem gente ruim pra caralho solta por aí e quero raspar a cabeça, envergar um vestido laranja e me recolher a um mosteiro no Tibet.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

crônicas policiais VII -Fim de Ano




-Inspetor Cruz! - chama uma voz feminina às minhas costas enquanto caminho apressado na calçada. Volto-me com a cara amarrada pois estou com pressa e sei que o "Inspetor Cruz" significa cliente de Delegacia querendo que eu interrompa meus afazeres e minha merecida folga para tentar resolver seus problemas. Deparo-me com uma senhora na casa dos cinquenta anos, toda sorrisos, uma fisionomia longinquamente familiar.

-Quero agradecer ao senhor pela ajuda que o senhor me deu aquele dia. Eu tava muito nervosa e não disse nem um obrigado pro senhor. Não sei o que seria de mim aquele dia sem a ajuda do senhor. Muito obrigado mesmo! E um feliz ano novo pro senhor e pra sua família! Que Deus ilumine o caminho do senhor e encha sua vida de bênçãos porque o senhor é uma pessoa boa e merece tudo de bom.

-Obrigado, mas não fiz nada de mais, nada além da minha obrigação. - respondo, enquanto viro e reviro meu baú cerebral à caça da história protagonizada por aquela senhora. Não encontro. São dezenas de casos e vítimas e testemunhas e acusados e envolvidos toda semana.

-Fez sim, o senhor me ajudou muito. Tudo de melhor pro senhor. Fique com Deus.

-O mesmo pra senhora. Vá com Ele.

Desisto de fuçar minha caixa de memórias, na esperança de que aquela em especial me venha espontaneamente mais tarde. Sinto uma coisa boa que me faz bem. Não é todo dia que alguém para o guarda na rua para agradecer pelo cumprimento do seu dever. Quero manter essa sensação por mais tempo mas ela logo se desvanece. A mensagem no grupo de WhatsApp da DP diz que o xadrez está cheio de presos, presos com raiva da sociedade, do sistema, do guarda zeloso.

O sistema é bruto, a vida é curta e gentileza gera gentileza.

Sigamos nossos caminhos e combatamos o bom combate quando preciso for.