terça-feira, 30 de setembro de 2008

O Ativista





Estêvão, PhD em Botânica e ferrenho ecologista, namorava à beira do lago. Diana, a namorada, ouvia, com interesse, a explanação de Estêvão acerca do crescimento, morfogênese e reprodução das algas marinhas bentônicas do Mar Báltico durante o equinócio da primavera e sua importância para o equilíbrio do ecossistema marinho. Foi quando ele lançou uma pedra nas águas do lago, atingindo acidentalmente a cabeça de um peixe, que boiou, biologicamente morto. Calado e cabisbaixo, também jogou no lago sua carteira de ativista do Greenpeace.

Carlos Cruz – 06/06/2007

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hay que endurecerse, mi general!


Hay que endurecerse, mi general!



Exclama a prostituta, num assomo de divertido compadecimento, diante do outrora imponente chefe da nação, que segura tristemente seu outrora empedernido - cabisbaixo, agora - órgão sexual, enquanto olha de soslaio para a cápsula azul. "Si al menos fuese roja..." - pensa, com suas insígnias e medalhas, o ex-comandante. Súbito, ergue-se, empertiga-se, apruma-se, fita a parede e solta a voz: "Compañeros del Ejército Rebelde y de las Milicias Nacionales Revolucionarias, cubanos todos: Duro y largo ha sido el camino, pero hemos caminado..." Muitas horas discursivas depois, suado, extenuado, observa, oco e sem sentimento, o corpo nu da puta adormecida, mal esculpido por implacáveis cinzéis, carregado de disformes marcas violáceas, frutos de trabalhos passados. Deixa alguns pesos sobre o criado-mudo, ao lado do pequeno rádio de pilha donde, alheio e clandestino, Mano Chao entoa "Por El Suelo". A ilha amanhece, vermelha, mais uma vez.

Carlos Cruz - 23/09/2008

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Réquiem de Despedida





Sentia um profundo pesar enquanto amarrava a corda na viga. Sentou-se e tocou um trecho do Réquiem em ré menor de Mozart. Não queria ter chegado a esse ponto, mas as dívidas acumularam-se, os cobradores não lhe davam sossego. Agora não havia mais retorno, estava decidido a acabar com aquele sofrimento de uma vez por todas, descansar em paz. Aplicou um puxão na corda, não podia arriscar seu rompimento no instante crucial. Estava firme. Respirou fundo, fez uma breve oração pedindo perdão a seus antepassados. Chegara a fatídica hora...
Chamou os homens que aguardavam do lado de fora do apartamento. Rompeu em prantos quando o velho piano Steinway iniciou a descida.

Carlos Cruz - 08/06/2007

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Raul Cortês





nem sei de quando
vem
nem por que
vem
ou veio, ou véio, gol
veia
ou velocino da preta
véia
sem dente de
ouro
de tolo
amassa bolo
de musgo de
aveia
quac!
de olhos de
baleia
de óleos de
rícino
rico
oco
rente

o grilo falante
besuntado de hidratante
lá do cume do hidrante
profeta, profetiza
precoce, preconiza
exorbitante, exorbita
exegeta, exige a nota
cheio de banca e de pose
distribui amiúde e
de graça, conselhos de graça
sábio artrópode sapiente

sê cortês!
se és o boi de piranha
se és a bola da vez
se és o bode, a rês, o cabrito montês
se o salário não chega ao meio do mês
se o chefe dá sempre razão ao freguês
se te vendem paraguaio por escocês
se a patroa te troca pelo rico burguês
se sonhas recorrentes sonhos de embriaguez
se dois mais dois sempre dá três
se o cachorro do vizinho comeu teu gato siamês
se à tua volta se agiganta a humana pequenez
se só o que vês é cega estupidez
sê cortês!

mandou ver e mandou bem
a boa e redonda letra
que somente iletrados
e letrados sem letra
e letrados não bestas
entendem e compreendem

na birosca do Tião
pedi uma com limão
outra e mais outra
e mais outra e mais

pus rima com cuscuz
avestruz e jesus
eu vi a luz! (porque luz
tem que rimar com jesus
assim como dor deve rimar com amor)

ô tião, sangue bom,
manda mais uma, então!
senti próximo o momento
de praticar o ensinamento
veio vindo lá de baixo
o indomável furacão
poderia despejá-lo
no chão, banheiro, balcão
mas não era de bom tom
jorrei volumoso e terno
no enternado
na calça de linho
na camisa de seda
no sapato de crocodilo
desalinhado e irado
pretendeu racionalizar o desagrado
célere, desarmei o desalmado
desacelerei o celerado:
se quiseres, podes me bater
mereço ser castigado
dês a primeira porrada
se não tiveres pecado
o soco veio firme, forte, pungente
primeiro, a inconsciência
o regozijo, a seguir
constatação, revelação:
cortês fui - me dei bem - aleluia!
vi o túnel negro, vi a luz
Vi o sempiterno Jesus!
(reforço: luz, obrigatoriamente, rima com Jesus)

Carlos Cruz (cruz também, saliente-se) - 27/08/2008

sábado, 13 de setembro de 2008

Não-soneto Esquizo-dadadodecassílabo Pobre de Rimas




Alvissareiro, o pedreiro filosofa o comércio do amor
Cachaceiro, o tesoureiro vaticina a vacina contra a dor
Matreiro, o vaqueiro tosquia a ovelha do pastor
Brejeiro, o cordeiro ludibria o astuto pensador

Canibalista, o hindu rumina a musical oração
Humanista, o soldado prepara a miraculosa poção
Demonista, o santo apregoa as pregas do sacristão
Fetichista, o exegeta ejeta na aorta o sabão

A Pangéia doente vomita proletários
Tapuias hasteiam a divinal bandeira
Os farrapos devotos da Régia Cangaceira

Riso escarninho, safadeza e: que otários!
Os suados gravatas bravatas crocitam
Fodam-se os asnos que nos criticam

Carlos Cruz - 07/02/2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Halterofilista



"Babacas..." - resmungava, ao ouvir as piadinhas sem graça - sempre havia alguma nova no inesgotável anedotário dos amigos otários - pejorativamente alusivas às supostas atrofias peniana e cerebral de quem se dedicava à comprovadamente saudável atividade de levantar pesos.
Poderia resignar-se, aceitar os gracejos, acomodar-se, mas não! Não jogaria a toalha sem lutar. "Retroceder nunca, render-se jamais!" - como diria Mestre Jean-Claude Van Damme. Primeiro, ao Sex Shop. Comprou uma bomba Big Pênis movida a ar comprimido. Depois, rumo à livraria. Adquiriu nada mais nada menos que sessenta livros, mais precisamente sessenta calhamaços, todos clássicos da literatura universal; "Os Irmãos Karamazovi", de Dostoiévski, era o menos volumoso. "É possível desenvolver qualquer parte do corpo humano, basta exercitar.", dissera o treinador. "Agora, eles vão ver quem é o anjinho barroco com cérebro de formiga...", pensou, satisfeito com sua genialidade. Pegou a pesada panela de ferro fundido, no fundo da qual mandara soldar uma barra de aço maciça. Dividiu os livros em duas pilhas iguais, amarrando-os, em blocos, às extremidades da barra. Acoplou a bomba ao pênis e a panela à cabeça. Enquanto o ar pressionava dolorosamente seu pinto, flexionava os joelhos e fazia abdominais. Sua cabeça doía, mas prosseguiu, firme. Minutos depois, já sentia os efeitos dos exercícios. "Ah, então é isso!" Lembrou-se de haver lido em algum lugar algo sobre exercícios literários. Três horas mais tarde, saiu à rua para caminhar. Apesar do pau e da cabeça doloridos, estava feliz. Era um novo homem, um misto de Arnold Schwarzenegger, Long Dong Silver e Machado de Assis.

Carlos Cruz - 05/09/2008

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Estróina Letrado, a Fortuna e o Desassossego




Vovó era rica, muito rica. Em virtude dessa circunstância financeiramente interessante, e somente por isso, todos a bajulavam. Todos menos eu. Achava um tremendo pé-no-saco aquelas histórias do tempo do onça, de quando ela dançou com Jorginho Guinle no suntuoso salão do Copacabana Palace ou da inesquecível noite de gala em que ela assistiu, ao vivo e a cores, o sapateado vivaz de Fred Astaire, derrubando cadeiras na Broadway. Mas, sem dúvida, a história campeã no quesito "dedo na goela" era a que narrava o romântico encontro dela com vovô, no interior do Cine Caruso. Não que aquela segurada de mão no escurinho do cinema fosse algo sem importância, afinal, se isso não houvesse acontecido, eu não estaria aqui. O problema era o filme. Ouvir, durante muitos e intermináveis minutos e com extrema riqueza de detalhes, o roteiro de Casablanca era um tremendo exercício de paciência e tolerância. Sem dúvida, se dependesse de vovó, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman ganhariam vários Oscar por sua atuação naquele maldito filme.
Por essas e outras, eu não visitava vovó. Ou melhor, visitava no Natal. A família reunida, todos disputando renhidamente aquele que tinha os melhores presentes: o saco da vovó. O do pobre bom velhinho era jogado para escanteio, ninguém queria saber de brinquedinhos de um e noventa e nove made in china. O que todos queriam era colocar as mãos na fortuna da vovó. E puxavam o saco, digo, os peitinhos murchos da vovó. Ora bolas, vovô tinha bolas, tinha saco; vovó não.
O tempo passou e o inevitável aconteceu: vovó morreu. Tal qual no Natal, todos se reuniram para enterrá-la bem rápido e ouvir a leitura do testamento, bem rápido. Após a leitura, choradeira geral e uma boca aberta: a minha. Jamais vou saber porque vovó deixou toda sua fortuna para mim. Logo eu que nunca a havia adulado, nem dado sonoros beijinhos no rosto, nem sorrido sorrisos idiotas enquanto elogiava sua aparência jovial, nem ficado horas ouvindo suas obsoletas histórias. A verdade é que a despeito das caras-de-bebê-cagado ao meu redor, eu, somente eu e mais ninguém, fora o agraciado pela generosidade da minha simpática (ficou de repente, o que posso eu fazer?) progenitora.
Bom, fiquei rico. No início era legal, muitas coisas a fazer, muitas coisas a comprar, muitos lugares a conhecer. Depois, com o tempo, ficou chato, muito chato. A fim de matar o tempo e esquecer o tédio, passei a escrever. Um poema daqui, um conto de lá, entretinha-me. Daí, surgiu um convite para publicar. Uma antologia. Aceitei. Paguei. Recebi vinte e dois livros. Meu conto ocupava menos de um quarto de uma página. Mas a sensação de vê-lo ali naquele menos de um quarto de página, o pequeno conto que escrevi, era muito boa. Não vendi os livros, afinal sou rico. Distribuí para os amigos e familiares. Os que leram - as pessoas não valorizam as coisas dadas - disseram que o livro era mediano, alternava contos mais ou menos com contos meia-boca com contos ruins. "E o meu, o que acharam? Ficou mais ou menos, meia-boca ou ruim?" Invariavelmente, todos disseram haver gostado por demais, que o conto era ótimo. Estarão eles me bajulando só porque sou rico? Acho que jamais saberei se realmente tenho talento com as letras ou se sou só mais um milionário metido à besta. Maldito dinheiro da vovó!

Carlos Cruz - 31/08/2008