segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Submergente



Estudante, operário, comerciante, marchant, empresário. Após a falência, estelionatário, escroque, rufião, traficante, ladrão.
Entrou no casarão. Como uma mansão daquelas não tinha alarme, vigia, sistema de câmeras, nem ao menos um cachorro? Portas, cadeados, grades reforçadas eram moleza. Passou os olhos pela grande sala. A dona da casa, indubitavelmente, tinha bom gosto, uma bela coleção de obras de arte. Mas não estava ali para furtar, não hoje. Andou pela sala, vasculhando-a de uma ponta a outra. Finalmente encontrou, num canto escuro sobre uma mesinha de madeira no estilo art nouveau, o objeto desejado: o vaso de porcelana feito no século 14, no período Hongwu da dinastia Ming. Segurou com todo cuidado, retirou da mesa com mais cuidado, depositou-o no chão com mais cuidado ainda. Desafivelou o cinto, arriou a calça, vergou o corpo, cautelosamente, até suas nádegas tocarem a borda do raro e caro artefato. Necessário não foi forçar muito para fazer aquilo que, forçosamente, tinha de fazer, dada a eficiência bombástica da buchada de bode consumida no almoço. A merda esguichou, veemente e impetuosa, no interior do vaso. Pronto. Estava feito. Se a cigana estava certa, sua vida começaria a mudar ainda naquela noite. Dirigiu-se ao banheiro, onde limpou-se com fino e macio papel higiênico de tripla camada. Saiu da casa, satisfeito, preparado para sua nova vida de braço dado com a fortuna, novamente. De novo a luz dos holofotes, de novo seu nome aclamado pelo high society, de novo seu rosto estampado nas colunas sociais dos grandes jornais. Ao cruzar o portão, uma forte luz no rosto fê-lo emergir de seus devaneios.
- Polícia! Você está preso, Gastão Hepaminondas!
Na manhã do dia seguinte, pediu emprestado o jornal do carcereiro, sua foto estampada na primeira página. "É." - pensou - "mesmo sendo uma gradessíssima filha da puta, a cigana estava certa."

Carlos Cruz - 01/08/2008

O Último dos Moicanos



Assistiu, com tremendo desprazer, seus semelhantes rasparem os cabelos e tatuarem suásticas nos braços, nas costas, nos tórax, nas nádegas e nas testas.
Agora, sozinho na metrópole, diferente, perseguido e acuado, vê-se em um beco sem saída, à mercê da salivante gangue de emos que aproxima-se ameaçadoramente. Sem vislumbrar melhor desfecho para o crucial impasse existencial, decide praticar o "do it yourself", antigo lema do outrora glorioso movimento punk. Espada em riste, impiedosa e impetuosamente, ataca. Sodomiza um, dois, três, quatro. O suor escorre copioso testa abaixo, provocando ardência nos olhos; a camisa, com a gravura de Sid Vicious, empapa. Exausto, espada vacilante, percebe a iminência do amargo fim. Os emos são muitos, jovens como o movimento do qual são sectários, vorazes, insaciáveis, multiplicam-se como baratas. Quando tudo parece perdido, eis que surge a salvação, ela é careca, musculosa, tatuada e bastante numerosa. Por deliberação unânime em assembléia, os carecas decidiram acrescentar à sua negra lista, na qual já constavam negros, judeus, orientais e nordestinos, os integrantes do movimento Emo. Caíram sobre eles aos socos ingleses, tapas e pontapés. Ao final do rápido e fulminante ataque, a praça era um mar de corpos maquiados, franjas, cabelos coloridos e roupas pretas espalhafatosas. O combate terminara com baixas maciças em apenas um dos polos.
Minutos depois, vieram os judeus ortodoxos que dizimiram os skins. Depois, apareceram os palestinos que destroçaram os semitas. O moicano virou crente de terno, gravata, Bíblia e cabelo moicano, que virou moda.
Alheio a tudo, o mundo prosseguiu seus movimentos ao redor do sol e de si mesmo, azul, redondo e careca como uma bola de bilhar.

Carlos Cruz - 04/08/2008