terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Filosofia Popular Brasileira




Juvenal seguiu à risca o conselho dos mestres quando ingressou na faculdade de Filosofia: leu dois livros por dia, todos os dias, durante exatos quatro anos. Anos de suplício. Sim, suplício. Sofrimento. Enfado. Exaustão. A disciplina auto-imposta suprimira todo o prazer dantes suscitado pelas incursões noturnas aos intrincados meandros filosóficos. Mas, hoje tudo acabaria. Faltavam apenas alguns minutos para sua apresentação diante da banca composta pelos honoráveis doutores e mestres. Depois, entregar-se-ia aos prazeres instintivos da carne, como nunca havia se entregado. Foderia muito, beberia muito, fumaria muito, drogar-se-ia muito. Escolheu seu filósofo favorito para a dissertação: Friedrich Nietzsche. Falaria sobre o advento do super homem na antigüidade, suas múltiplas e mutatórias facetas ao longo das eras, seu impacto na sociedade capitalista pós-moderna e a aplicabilidade pragmática do conceito intrínseco em suas variadas formas de representação. Nada escreveu. Não precisava. Lera e relera todas as obras de Nietzsche dezenas de vezes, ao som de seu cantor predileto, aliás, o único que ouvia: Belchior. Adorava as músicas de Belchior. Quatro anos lendo Filosofia e ouvindo Belchior. Talvez fosse uma forma inconsciente de auto-flagelação. Talvez fosse a semelhança entre os bigodes. Talvez realmente gostasse. Talvez. Ouviu alguém chamar seu nome. Era chegada a hora. Dali a alguns minutos, seria um homem livre.
Entrou no auditório. A banca era formada por quatro homens e duas mulheres, todos acima dos cinqüenta, a julgar pelas feições. Todos com expressões graves, austeras.
- Comece. - disse, secamente, um deles.
Algo aconteceu naquele instante crucial. Alguns chamariam de amnésia, outros de esquecimento temporário, outros chamariam de "branco" mesmo. O fato é que Juvenal esquecera por completo o tema de sua apresentação. Sequer recordava-se do nome de seu filósofo preferido. Fez um tremendo esforço para se lembrar. Os membros da banca já demonstravam impaciência:
- E então? - indagou a mulher com grandes óculos.
Juvenal suava em bicas, seu rosto cada vez mais vermelho, afogueado. O esforço era enorme. Estava zonzo. Sua cabeça rodava, rodava. Súbito, alguma coisa dentro de seu cérebro despertou. Meio entorpecido, meio extático, Juvenal começou a cantarolar um mantra, feito um monge tibetano. Os anciãos apuraram os ouvidos. Não. Não era um mantra. Era uma música conhecida de um conhecido cantor bigodudo.

"Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez na tua mão
Um gole de conhaque, aquele toque em teu cetim
Que coisa adolescente, James Dean
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez na tua mão
Não fico mais nervoso, você já não grita
E a aeromoça, sexy, fica mais bonita."

- REPROVADO! - a voz da mulher com grandes óculos de aro de tartaruga ecoou no auditório e no interior do crânio de Juvenal, tirando-o do transe.
- Reprovado?!? Não pode ser! Estudei muito para chegar até aqui! Vocês nada sabem! São um bando de engomados obtusos com mentes atrofiadas e idéias pré-concebidas e tacanhas! Não me submeterei aos grilhões que cerceiam a evolução da raça humana! Sou homem! Sou super! Estou além do bem e do mal!
Completamente fora de si, Juvenal lançou mão do pedestal do microfone. A primeira a cair foi a gorda de óculos, o sangue a jorrar de sua têmpora esquerda. Os demais tentaram fugir do tresloucado Juvenal, que arremeteu com fúria, desferindo golpes precisos com sua arma-pedestal, derrubando mais dois, mortalmente feridos. Três dignitários conseguiram escapar. Os seguranças da universidade entraram na sala. Após muita luta, subjugaram Juvenal, que foi levado para o manicômio judiciário, onde aguarda julgamento, sem receber visitas. Submetido a duas sessões de tratamento eletro-convulsivo e a dezesseis horas de trash, black e doom metal por dia, apresentou significativa melhora. Como recompensa, ganhou uma caixa de giz de cera e vinte folhas de papel. Preferiu adornar as paredes de sua cela com uma inscrição, transcrita centenas de vezes: "deus está morto. assinado Nietzsche".

Carlos Cruz - 30/11/2007

Mêta Linguagem









Meta linguagem

na boca sem língua
na língua lépida
na mente com íngua
na palavra tépida

Meta linguagem

na prosa verborrágica
na letargia cíclica
na poesia hemorrágica
na vanguarda tísica

Meta linguagem

na crítica estúpida
na frase esdrúxula
na visão insípida
na vertente pústula

Meta linguagem

no velho panegírico
na sagrada epístola
no pensar raquítico
na cultuada fístula

Meta linguagem

no túnel hermético
no exegeta fétido
no destempero léxico
no escritor intrépido

Meta linguagem

na douta arrogância
no inútil semanário
na editorial ganância
no rectu literário

Carlos Cruz - 23/12/2007

Feliz Ano Novo, Seu Maluco!



Os segundos finais do ano que acabava pareceram-lhe intermináveis horas. As marteladas no seu cérebro acompanhavam o ritmo alucinante imposto pela bateria trash impiedosamente massacrada dentro de seu coração atormentado. Agonizavam. Ele e o ano velho. Tinha certeza que o alvorecer do novo ano trar-lhe-ia a morte. Tentara, sem êxito, alertar os familiares. Não deram-lhe ouvidos. Os psicólogos e os policiais tiveram a mesma atitude fleumática. "Maluco." - diziam, entredentes. O primeiro estampido dos fogos de artifício causou-lhe um sobressalto. Depois, a saraivada, as múltiplas cores pipocando no céu estrelado, saudando luminosamente o nascituro ano. O fascínio do espetáculo deu-lhe um certo estupor, quase esqueceu sua sina. Foi quando a pequena e estrepitosa língua de fogo, proveniente de um arbusto próximo, trouxe-o de volta à realidade. Sentiu o calor no abdômen, a dor lancinante, o sangue quente urdindo da ferida aberta, ensopando sua camisa branca. Antes do derradeiro estertor, fitou o céu iluminado por aquela profusão de estrelas cadentes artificiais. Contraindo os lábios num ricto, pensou, satisfeito: "Eu estava certo!"

Carlos Cruz - 31/12/2007