segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Adrenalina, Porcos, Vacas, Tropa de Elite e Baixo Salário



"Quem diria... O André, mocorongo do jeito que é, virou polícia..." O comentário, feito por meu genitor quando soube de meu ingresso na gloriosa PCERJ, deixou-me um tanto frustrado. Afinal, sei que sempre fui um poço de paciência e insuportavelmente calmo, mas mocorongo? Não encontrei o termo no Aurélio. Procurei na Rede. Segundo a definição do dicionário informal, mocorongo significa idiota, tolo, burro, estranho, esquisito, diferente e está relacionado às palavras mané, bocó, trouxa, otário, besta, estranho, esquisito, diferente. Em suma, mocorongo é um adjetivo quase insultuoso. Mas sei que meu pai não teve a intenção de me insultar. Referia-se a meu jeito "devagar" de ser.
Todavia, meu objetivo, ao empreender essa tentativa de escrever uma crônica, nada tem de filológico, etimológico ou morfológico. Quero vencer minha resistência em falar sobre minha profissão. Sempre evitei falar no assunto. Escrever então, nem pensar. Talvez devido a um "recalque" arraigado em meu cérebro, proveniente das leituras acerca dos desmandos da ditadura militar, SNI, DOI-CODI, AI-5 e o escambau; talvez por excesso de punk rock; talvez por não aceitar haver sido vencido pelo sistema, a ponto de fazer parte dele em detrimento de minhas pretensões poético-musicais-artísticas da adolescência. Talvez. O fato é que decidi regurgitar minha opinião, por mais exdrúxula e estapafúrdia que ela seja, animado pela repercussão positiva do sangrento filme Tropa de Elite. Por mais violenta que seja, a saga do Capitão Nascimento e seus comandados desencadeou uma onda de simpatia dos cidadãos pela Polícia. De repente, o policial que antes era taxado de corrupto, truculento, perverso, tornou-se o paladino da Justiça, o defensor dos fracos e oprimidos, pronto para dar sua vida, mesmo recebendo um salário de fome no final do mês, na guerra contra os cruéis e impiedosos traficantes, os vagabundos sem alma. Tenho de confessar que fiquei arrepiado ao final do filme. Ouvi muitas histórias de colegas que foram barbaramente torturados e queimados vivos no tal "microondas".
Não me envergonho de dizer: estou na Polícia Civil por acaso. Trabalhei durante muitos anos na Rede Ferroviária Federal, feliz e satisfeito em minha função de artífice metalúrgico. É. Eu era um "peão", como costumam chamar aqueles que trabalham "na graxa". Só que sobreveio o governo Collor e com ele as privatizações das estatais. Alguns anos e centenas de funcionários demitidos depois, percebi que minha vez estava chegando. Tomei uma decisão: faria algum concurso público. Tinha família para sustentar, não podia ficar à deriva, à mercê das cotenções de despesas para agradar os acionistas. Comprei a Folha Dirigida e tava lá: concurso para inspetor de polícia. "Polícia?" - pensei. "Polícia não dá. Isso vai contra minhas convicções anarco-comunistas." Lembrei das leituras, das torturas, da repressão, da fase punk, do 'Fuck the Police'. Mas, daí, lembrei de meu filho que ia completar um ano de idade e precisava de leite e fraldas, precisava do papai para prover o sustento pois mamãe não trabalhava. Foi mais forte. Muito mais. Meus arroubos anarco-punk-ideológicos foram sobrepujados por aquele pequenino. Fiz o concurso, passei, entrei na instituição, acautelei arma e distintivo. Optei por trabalhar no interior. Não tinha pique para subir favela no Rio, sempre odiei exercícios físicos e fumo demais.
Na primeira semana no plantão da delegacia, lavrei meu primeiro flagrante. Furto de porco. Isso mesmo. Furto de porco. Os meliantes (no policês) entraram no chiqueiro que ficava no quintal da casa do cara e, munidos de uma afiada faca de açougueiro, assassinaram e destrincharam o pobre e indefeso animal que o proprietário estava engordando para o Natal, transportando-o para casa num carrinho-de-mão. Como diz o aforismo, não existe crime perfeito. O deles não foi diferente: em virtude da escuridão noturna, não perceberam que o sangue do suíno havia deixado um rastro no chão que terminava na porta da residência deles. O lesado só teve o trabalho de seguir e chamar a PM. Os três foram presos e o porco fatiado apreendido e entregue ao dono. Segundo o colega plantonista, bastava eles alegarem motivo famélico que o Juiz soltá-los-ia. Furtaram para comer.
Com o tempo, comecei a gostar do que fazia. A cada vinte ou trinta ocorrências maçantes, do tipo furto de celular, briga de vizinhos, atropelamento de vaca, ameaça, aparecia uma interessante. Como aquele estupro. O elemento (policês, de novo) agarrou a moça num local escuro, lutaram, ela feriu o rosto em uma cerca de arame farpado, disse que tinha AIDS, mas não houve argumento que demovesse o cara: o estupro aconteceu. Investigações iniciadas, recebemos um informe - denúncia anônima - de que o estuprador vivia com o pai-de-santo X.. Eu e um colega fomos até lá e qual não foi nossa surpresa quando o religioso, ao inteirar-se da denúncia, fez cara de espanto e disse:
- Olha, eu não sei de nada não. Mas meu santo de cabeça, Dona Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, sabe. Peço que esperem. Vou incorporá-la e aí vocês conversam com ela.
Entramos no jogo. O pai-de-santo fez lá a mandinga dele e, até prova em contrário, incorporou a tal entidade. Ela, com aquele linguajar característico, disse que estava muito triste com o que estava acontecendo em sua casa. Seu filho tinha enveredado por um caminho torto. Ia nos ajudar. Escreveria um bilhete que deveria ser entregue às mãos de um cabeleireiro, cujo salão situava-se em outra cidade. Fomos até lá. O cabeleireiro, após ler o bilhete, desmunhecadamente apontou o criminoso. Prendêmo-lo. No trajeto para a DP, ainda na viatura, ele confessou que tinha fugido de um município vizinho, onde havia assassinado a mulher e a sogra.
A profissão tem seus momentos bons. A satisfação do lesado quando recuperamos e restituímos um bem subtraído. O alívio dos familiares quando resgatamos um seqüestrado. Isso dá um certo orgulho e me faz lembrar de outra situação, digamos, insólita: uma senhora idosa, bastante nervosa, entra na DP e diz que está sendo ameaçada por um homem, que telefonava a cobrar para sua casa e sabia tudo sobre ela e sua família. Mostra a conta e o número do celular. Sabia que se fosse conduzir a investigação pelos trâmites convencionais - redigir informação para o delegado acerca da necessidade de representação ao Juiz pela quebra de sigilo de dados referente à tal linha de telefone; elaboração, pela Autoridade Policial da representação; encaminhar a representação para o fórum; aguardar deferimento do MM. Juiz; remeter decisão para a operadora de telefonia; aguardar resposta da operadora - levaria meses. Decidi agir. Telefonei para o número. O cara atendeu.
- Alô.
- Bom dia, caro amigo. Meu nome é Asdrúbal, sou operador do setor de atendimento ao cliente das Lojas Ponto Frio e tenho a grata satisfação de lhe informar que você foi sorteado dentre milhares de candidatos para participar de nossa promoção "Semp-Toshiba, Ponto Frio e Você, Tudo a Ver". Você estará tendo a oportunidade de concorrer a um televisor Semp-Toshiba, modelo C-290, de vinte e nove polegadas, que será entregue em sua residência, sem despesa alguma, bastando que para isso responda a uma simples pergunta. - falei, sem respirar e sem dar tempo de o cara pensar. - Qual a melhor loja de eletro-eletrônicos do Brasil?
- Ponto Frio! - o cara mandou, na lata.
- Parabéns, caro amigo! Você acaba de se tornar o feliz proprietário de um televisor de vinte e nove polegadas Semp-Toshiba. Agora, preciso de seus dados para a entrega do aparelho.
- Mas eu não vou pagar nada não?
- Absolutamente. Todas as despesas são por conta do Ponto Frio. Qual seu nome e endereço?
O cara passou tudo: nome, endereço, telefone, RG, CPF, nome do pai, da mãe, número do sapato, cor preferida, time do coração... Esperou uma televisão, recebeu uma intimação. A senhora idosa não foi mais importunada e, é claro, ficou muito satisfeita com a eficiência da polícia. Passou a reclamar menos na hora de pagar seus impostos.
Embora tenha passado a apreciar meu trabalho, não sei por quanto tempo permanecerei. O problema é o salário. Baixo demais para a atividade desempenhada e o risco que ela envolve. Ademais, a vagabundagem não vai parar de atirar. Tiros de fuzil. Fazem um tremendo estrago. O mundo vai continuar sendo um mundo-cão cheio de gente que tem medo e gente que mete medo. Já cantava Raul: "Durango Kid só existe no gibi, e quem quiser que fique aqui, entrar pra história é com vocês." Fico com ele.

Carlos Cruz - 12/12/2007

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