sábado, 19 de julho de 2008

A Panela



À primeira vista, era uma panela como outra qualquer. De pressão. Uma panela de pressão como outra qualquer. Tinha forma circular, tinha cabo, tampa e aquela coisa vermelha com furos que roda e expele vapor. Quem passasse casualmente por ela, quem a visse ainda que de relance, quem a observasse detidamente ou não, quem a analisasse profundamente ou superficialmente, diria, sem titubear: é uma legítima panela de pressão. Mas não. Não, não e não. De novo não. Havia um diferencial, algo que não se podia observar de fora e fazia única aquela panela: ela falava. Sim, é isso mesmo, a panela era uma panela falante, mas não uma panela falante qualquer. Não! Era uma panela falante de muitas vozes, meio poeta, meio contista, meio cronista, lá uma vez ou outra até mesmo meio romancista. Uma panela de pressão falante intelectual metida à besta? Talvez. O fato é que a panela não parava de falar, recitava poemas, contava histórias, fazia crônicas e... xingava! Pestanejava, proferia impropérios, reclamava, insurgia-se, revoltava-se, reivindicava direitos... É. Era uma panela de pressão falante poeta contista cronista romancista intelectual metida à besta crítica e temperamental.
A panela foi levada para o INMETRO e submetida a uma série de testes com vistas a descobrir a origem das vozes. O problema maior era a tampa. Ninguém conseguia retirá-la. Tentou-se de um tudo: força física, calor, frio, choque térmico, um instrumento parecido com um desentupidor de pia, ímãs. Tudo em vão, a tampa não se mexia. Thomas Green Morton, Uri Geller, Padre Quevedo, James Randi, Mister M, dentre outros paranormais e mágicos foram chamados às pressas e também tentaram, sem sucesso, remover a famigerada tampa. Apelaram para a espiritualidade. Pais-de-santo, padres, pastores, xamãs, caciques, monges, esotéricos e místicos de toda sorte fizeram seus cultos, rituais e mandingas. Nada. A panela, pelo visto, era não-sectária e atéia. O mais constrangedor era ouvir as troças malcriadas da dita cuja a cada novo fracasso. Além de tudo, ainda era uma pândega. Por fim, a panela foi levada, sob veementes protestos de baixo calão, para a NASA, onde foi submetida a novos testes e novas tentativas de remoção da tampa. Os dias foram passando, os testes fracassando e os xingamentos se acentuando. "Porcos imperialistas! Abaixo o imperialismo ianque! Abaixo a ditadura estaduniense! Deixem o povo iraquiano viver em paz! George Bush é a reencarnação de Adolf Hitler!" Além de tudo, a panela também tinha inclinações esquerdistas.
Quando os sucessivos insucessos somados às imprecações da panela já começavam a desanimar a equipe de especialistas, eis que aconteceu o fato que deslindou o mistério: um físico, exausto, a fim de abstrair do estressante trabalho e relaxar um pouco, iniciou a leitura, em voz alta, de uma tradução inglesa de um dos livros do escritor Saulo Joelho. Súbito, a panela interrompeu o palavrório e começou a expelir um vapor vermelho. À medida que o físico lia, mais vapor a panela expelia. Dentro em pouco, a panela passou a expandir-se e encolher-se, intermitentemente. Parecia uma maria-fumaça de desenho animado ou a respiração de uma pessoa colérica. O físico, estimulado pelos colegas, prosseguiu a leitura. O bufar da panela foi aumentando, aumentando, aumentando até que... explodiu! A tampa cravou-se no teto e da panela saíram centenas de homenzinhos e mulherezinhas que olharam para os atônitos especialistas e, em uníssono, disseram: "Porra, Saulo Joelho em inglês é demais! Não há panela de escritores que agüente!"

Carlos Cruz - 19/07/2008