sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Coloquiais Ponderações Catártico-Genitais ou A Dialética da Vulva





Subitamente, de repente e sem aviso prévio, minha vagina desembestou a falar. O fato, por mais curioso, inusitado e estapafúrdio, deu-se. Ainda que inacreditem, questionem ou recalcitrem, deu-se. Deus, se incendiário não fosse, materializar-se-ia, cheio de pompa e circunstância, em rubra lâmpada incandescente e, prosopopeicamente, corroboraria minha história. Mas fatos são fatos e jamais deixarão de sê-los, não obstante controvérsias e contradições. Numa noite fria de sábado, no interior de um motel tradicional, sobre um leito redondo tradicional, um colchão redondo tradicional, forrado com alvo e tradicional lençol, debaixo de um espelho um tanto baço mas não por isso menos tradicional, tendo como testemunhas oculares, vaginais, anais, orais, notada e dotadamente penianas, Mandingo, Rocco Sifredi, Katja Kassin e a mulher-tigre de pele morena, imóvel e emparedada, cujo olhar felino e selvagem penetrava perscrutadoramente até a mais gélida alma dos copos baratos de vidro vagabundo e transparência perdida, ocasionando calafrios nas garrafas de cerveja transpirantes, minha semi-depilada vulva tagarelou sem pudor e sem papas, mesmo porque papas e bocetas, desde que o clero é clero, não combinam. O efeito foi devastador, uma excitação invertida. Deu-se que, falante, minha vagina não se deu nem se comeu. Explico. Artur, há dias e dias e outros tantos dias, papeava-me - no meio moderno - ou cortejava-me - no todo arcaico - arremessando, ora plácido, ora impetuoso, todo seu auto e árduo charme cafajeresco. Cavaleiro real, cavaleiro medieval, cavaleiro templário, jamais cavaleiro com agá a mais, muitas ocasiões cavaleiro sem eiro nem beiro, só ó sem acento e provido de ferraduras, duras ferraduras que machucavam, deliciosamente. Ora alazão, ora pangaré, chucro, sempre. Eu, cá em minha sagacidade feminina - pois todas as fêmeas, mesmo as auto-renegadas, possuem essa qualidade - adocicadamente recusava-lho sem recusar-lho, permitindo furtivas olhadelas, alvissareiros vislumbres de paraísos terrenos e gozos celestiais. Ele, por sua vez, qual lobo cuja voracidade não se aplaca com qualquer torresmo de porquinho-da-índia estragado, investia, arremetia e de novo investia, acrescendo ímpeto. Por fim, considerei oportuno o momento e, sem resistência - estava louca pra dar pra ele - deixei-me conduzir ao quadrado espelhado dos prazeres da carne. Estirei-me, escancaradamente nua, com as pernas descaradamente abertas, desabrochei-me perfumada e lúbrica, convite róseo e úmido, inescusável. Artur, todo suor e saliva, mal dissimulando seu atabalhoado ardor, chegou-se. Cerrou os olhos visando melhores aspirações, como o sommelier prestes a provar o vinho nobre e raro ou - cinzas, saco, silício, autofustigamento! - o devoto apostólico antes de bebericar "la sangre de Jesucristo". Lá do alto, meu cérebro pedia: "Lambe!", os mamilos túmidos de meus seios bombados imploravam: "Lambe!", meus lábios rubros e retorcidos suplicavam: "Lambe!". Artur expeliu um, dois, três palmos de uma língua muito vermelha, convulsa, frenética - soube depois, explico já - cuja afilada ponta aproximava-se vibrante de meu clitóris latejante. Foi quando minha encharcada vagina gritou: "Lambe, porra!!!" Uma voz rouca, quase gutural, que reverberou pelos seis lados do cubo, fazendo Artur dar um salto, uma pirueta desengonçada, um ornamental tosco, um mortal - gracias, Madre de Dios! - sem morte. Ele mirou de frente, de lados, detrás, olhares oblíquos, retos, diagonais, parabólicos, hiperbólicos, vasculhou cômodos com minúcias, sempre a interrogar aquele que julgava ser o emissor da ordem desobedecida: "Quem está aí? Apareça!" Eu, sem nada entender, sem nada atinar quanto à origem da voz de trovão, sentia os calores de minha recém-olvidada boceta esvaírem-se, pouco a pouco, de quente úmida, passando por tépida menos úmida, atingindo o nível fria quase seca. Quando as descargas elétricas provocadas pela nervosa tensão já se podiam divisar, eis que irrompe, mais uma vez, a tonitruante, desconcertante, brochante voz: "Tá procurando o quê, gostosão? Para com isso e vem cá continuar o que você não começou! Viemos aqui pra foder ou pra brincar de pique-esconde? Vem esconder essa pica aqui dentro de mim, vem!" Surpresa, estupefação, aturdimento, eu percebi, ele percebeu, não havia dúvidas, minha vulva falava, tagarelava com despudor, e, o que é pior, completamente desbocada e com farto uso de palavrões. Nervosa, fechei as pernas, ouvi grunhidos abafados, reabrí. Artur, olhos esgazeados e fixos em minha cona, aproximou-se, lentamente. Estacou ante nova abordagem. Era o início do colóquio.
- Tá, já sei, estraguei tudo, a foda já era... Bonitão, diz uma coisa, se eu ficar quieta, não soltar nem mais um pio, virar uma boceta-túmulo, você me fode? Ou pelo menos me lambe? Se você soubesse quantas vezes fiquei molhada por sua causa... Essa aí em cima tava louca pra dar pra você faz tempo... E aí, o que diz?
- Ma-mais... Como pode? I-isso é algum truque? - olhos na vulva, olhos nos olhos - Você é ventríloqua?
- Estou tão surpresa quanto você. - retruquei.
- Já ouviram falar em animismo, panteísmo, orfismo, pitagorismo, empedoclismo, platonismo, reencarnação, transmigração das almas, metempsicose? Outra coisa, podem, por favor, desligar a tevê? Esse papo e esse "fuck me" renitente não combinam.
Desligamos a televisão mas nada dissemos. Diante de nosso mutismo, ela assumiu um tom grave e didático. Prosseguiu:
- Segundo as teorias citadas, existe a possibilidade de a alma humana encarnar em outros animais e vegetais. É mais ou menos meu caso. Mais ou menos porque, apesar de não haver encarnado em animal irracional ou em vegetal, voltar à existência numa boceta, definitivamente, não se adequa ao conceito clássico de reencarnação, ainda que vaginas sejam feitas de carne. Concordam comigo?
Continuamos mudos. O reflexo da minha boceta no espelho, o movimento de seus grandes lábios - acho que nunca esse nome foi tão apropriado - enquanto argumentava, causavam-me uma espécie de deslumbramento. Não era uma boceta falante qualquer, era a minha boceta! E, além do mais, lúcida, razoável, inteligente, loquaz, malgrado o emprego constante de palavras obscenas. Mas, o que se poderia esperar de uma boceta falante? Polidez?
- Vocês não têm língua? Bom... pensando bem, eu não tenho e estou falando pelos cotovelos, digo, pelos grandes lábios. Ah! Deixa pra lá... Respondam-me, ao menos: querem ouvir as historias de minhas vidas?
Entreolhamos-nos, Artur e eu, mais uma vez. Meneei a cabeça, em sinal de aquiescência.
- Ótimo. Antes de começar, permitam-me que me apresente... Fui batizado Tomás de Torquemada e nasci no ano...
- O quê? - interrompi - Tomás de Torquemada, o cruel inquisidor espanhol? Não! Não pode ser!
- Não sou cruel! Não sou e não fui! Apenas cumpri meu dever, imbuído do poder que me foi conferido pelo Sumo Pontífice, o representante de Deus na Terra, que me nomeou inquisidor-geral e me dotou de autoridade para perseguir, capturar, julgar e condenar à Santa Fogueira, judeus levianos e muçulmanos dissimulados, todos hereges, feiticeiros, bígamos, sodomitas, apóstatas. À frente da Inquisitio Haereticæ Pravitatis Sanctum Officium, zelei por expurgar o mundo dessa raça maldita, extirpar os pecadores marranos da face da Terra, promover a purificação por meio do fogo, de modo que prevalecesse "la sangre limpia", os verdadeiros cristãos. Sou Tomás de Torquemada, o martelo dos hereges, a luz de Espanha, o salvador do meu país!
- Assassino! - gritei. Não podia ser verdade, era surreal demais, uma tremenda sacanagem, uma putaria do destino. Estava simplesmente apavorada, afinal, saber que minha linda, cheirosa, levemente testuda, apetitosa - palavra de quem provou - bocetinha era a reencarnação do mais atroz inquisidor que já passara pelo Santo Ofício não é uma informação fácil de assimilar. Bom, ao menos isso explicava o que anos de terapia não revelaram: meu incontrolável tesão diante de cenas de tortura com uso de fogo. Nunca vou esquecer o filme "O Nome da Rosa", não pelo elenco, roteiro, fotografia e tudo mais, que são ótimos, mas porque este filme me proporcionou um dos melhores, talvez o melhor orgasmo de minha vida, e, também, porque quase enlouqueci de vez... Mas e as outras coisas estranhas que me excit...
- Ah, você acha isso? Espere até saber quem foi minha encarnação seguinte...
- Meu Deus, ainda tem mais?... Não tenho estrutura pra novas surpresas estranhas... Nem pra revelações bombásticas... Vamos fazer o seguinte: amanhã você me conta, ok?
- Seria tarde demais. Ainda que talvez não compartilhem de minha opinião, lamento dizer que amanhã nada mais direi. Tive de usar todo meu poder de argumentação, tendo em vista a inutilidade de meu irresistível carisma, quando no Limbo estava, para convencer Aquele-Que-Tudo-Sabe-Tudo-Pode-E-Está-Em-Todo-Lugar-Ao-Mesmo-Tempo no sentido de fazer essa pequena e fugaz concessão, uma vez que meus anteriores pedidos se chocaram contra os tímpanos divinais, transmutados, naquele momento, em muralha de granito. Mas nem tudo estava perdido. Todos os céus, de alto a baixo, estremeceram com a gargalhada de Sua Excelência Toda-Poderosíssima quando ouviu minha derradeira súplica. Lembro como se fosse hoje de Suas santíssimas e rechonchudas bochechas vermelho-fogo e das palavras que disse: "Isso vai ser engraçado pra caralho!" Deus é um puta sacana, vocês sabiam?... Bom, mas voltemos ao que interessa, minha encarnação seguinte. Vocês arriscam um palpite?
- Nada é tão ruim que não possa piorar... Quem poderia ser? Ivan, O Terrível?
- Compreendo que não estou em condições de exigir nada, mas não me ofenda, por favor. Ivan foi um louco, um doido-varrido cujo único feito digno de louvor foi ter matado alguns muçulmanos quando conquistou Kazan. O homem no qual reencarnei foi, numa escala de importância, o segundo maior líder que já pisou a terra, só perde para Jesus Cristo e somente porque Ele era filho de Deus. Cá entre nós, considero as idéias desse segundo líder muito mais edificantes e interessantes que as do Filho de Maria.
- Jesus... Estou ficando preocupada... Não vá me dizer que minha boceta, além de Torquemada, também é a reencarnação de Stalin...
- Você tirou mesmo o dia pra me ofender! Não! Não fui aquele porco chauvinista!
- Tá. Então, fala. Quem você foi?
- Um homem inteligente, sensível, um artista que desde muito jovem demonstrava enorme talento com as tintas...
- Monet? Renoir? Pissarro? Degas? Van Gogh?
- Tá frio. Na juventude, para se sustentar, pintava paisagens e as vendia para mercadores...
- Sei lá quem é. Biografia de pintores não é meu forte. Seria Dalí, Picasso, Rembrandt?
- Bateu na trave de novo... Bom, vou fazer o seguinte, reproduzirei "in verbis" dois trechos de minha obra escrita que só não foi um best seller graças à interveniência de meus detratores, que eram gentinha, raça ruim... Escutem com atenção, depois me digam se descobriram quem fui... "As causas exclusivas da decadência de antigas civilizações são: a mistura de sangue e o rebaixamento do nível da raça, que aquele fenômeno acarreta. Está provado que não são guerras perdidas que exterminam os homens e sim a perda daquela resistência, que só o sangue puro oferece. Todo o que, no Mundo, não é raça boa é joio."
Suspendi a respiração, transpirei, estremeci. Ela, ele continuou. "Se os judeus fossem os habitantes exclusivos do Mundo não só morreriam sufocados em sujeira e porcaria como tentariam vencer-se e exterminar-se mutuamente, contanto que a indiscutível falta de espírito de sacrifício, expresso na sua covardia, fizesse, aqui também, da luta uma comédia. É pois uma idéia fundamentalmente errônea, querer enxergar um certo espírito idealista de sacrifício na solidariedade do judeu na luta ou, mais claramente, na exploração de seus semelhantes. Aqui igualmente o judeu não é movido por outra coisa senão pelo egoísmo individual nu e cru. Por isso mesmo, o Estado judaico - que deve ser o organismo vivo para a conservação e multiplicação da raça - não possui nenhum limite territorial. Uma formação estatal compreendida dentro de um determinado espaço, pressupõe sempre uma disposição idealista na raça, que ocupa esse Estado, antes de tudo, porém, uma compreensão exata da noção de 'trabalho'. A falta de tal convicção acarreta o desânimo, não só para construir, como até para conservar um Estado com limites marcados. Com isso desaparece o fundamento único da origem de uma civilização." - pausa. E aí, nada? Nem um palpite?
- Estou com medo de dizer o nome... Não me diga que você, além de Torquemada, foi...
- Adolf Hitler! O maior estadis...
- Não!!! Não! Não e não! - instintivamente, fechei as pernas. - Tudo menos isso! Saber que minha boceta é a reencarnação de Torquemada, mesmo a contragosto, dá pra engolir. Agora, Adolf Hitler! O maior genocida de todos os tempos memoriais e imemoriais! Aí já é demais!
Artur permanecia do mesmo jeito, calado e com cara de idiota.
- Artur! Você vai ficar aí com essa cara de imbecil? Diga alguma coisa!
- Abra as pernas.
- Puta que pariu! Porra! Caralho! Minha boceta, sem mais nem menos, resolve falar, diz que foi não um, mas os dois piores animais que já pisaram a face da Terra, eu com uma puta vontade de me atirar pela janela e você pensando em sexo!
- Você não entendeu. Abra as pernas. Deixe ela... ele falar.
Não queria reabrir as pernas, nunca mais, aqueles grunhidos roucos e abafados me oprimiam, eram uma tremenda tortura. Todavia, havia uma pontinha de curiosidade mórbida e meio masoquista somada ao desejo de que aquele pesadelo terminasse logo, além de uma vaga esperança de que minha vagina, após dizer tudo o que tinha de dizer, tornasse ao seu abençoado estado de quietude, nada de palavras, frases, períodos, orações. Sons, só aqueles desagradáveis e cacofônicos ruídos muito semelhantes a flatos que me deixavam constrangida. Cedi. Escancarei as pernas de novo. Fala, boceta!
- Cof! Cof! Porra! Não faça mais isso, por favor. Foi um custo conseguir essa concessão. Como falei antes, é só por hoje. Amanhã, volto a ser apenas uma vulva como outra qualquer. Urinarei, umedecerei, acolherei, abnegadamente, os pênis que desejem me penetrar, com vossa permissão, minha senhora, é claro.
- Tá. Deixarei você falar, ainda que isso seja um enorme suplício para mim. Mas, diga-me uma coisa: por que eu? Por que a minha vagina, dentre tantas, foi a escolhida?
- Sua preferência por negros, indígenas, ciganos, amarelos, sarracenos, judeus, mulatos, cafuzos, mamelucos, bissexuais, deficientes, et cetera e et cetera e tal. Foi o modo que o Todo-Todo-Poderoso escolheu para me punir por haver tentado, mais uma vez, limpar o sangue da decadente humanidade.
- Ei! Alto lá! Mas eu sou branco, não sou cigano, judeu, bissexual nem deficiente! - protestou Artur.
- Sim. Você é caucasiano. Não chega a ser um ariano, mas dá para o gasto. E é por sua causa que vocês estão tendo o prazer de ouvir minhas palavras... Vou explicar. Deus, conforme eu disse, é um pândego, um piadista contumaz, morre de rir com as trapalhadas humanas que ele mesmo promove. Antes de ensejar essa tremenda sacanagem que fez comigo, disse Ele, às gargalhadas: "Permito que fales, mas só por um dia. E antes que me perguntes, em verdade te digo que falarás no dia em que a mulher portadora de teu pérfido espírito se deixar conduzir à alcova por um homem de pele alva, de espírito impuro e de poucas palavras."
- Espírito impuro! Era só o que me faltava! Vou à missa todo domingo, me confesso, cumpro à risca a liturgia católica.
- E aqueles encontros com o coroinha, na sacristia, depois da missa? O que me diz? - indagou Hitler-Torquemada-Genitália-Vulva-Cona-Vagina-Boceta.
- Vou embora!
- Ah, vai não, fofo! - ele, ela de novo.
Artur bateu forte a porta do pequeno quarto. Ouvi o ronco do motor do carro, acelerou, arrancou, se foi.
- Viu o que você fez? - disse eu - Além de quase me deixar maluca com essa história de Torquemada, Hitler e o caralho a quatro, ainda me faz perder um dos homens mais gostosos que já se interessaram por mim. Além de tudo, fiquei a pé. - esqueci, por instantes, de que dialogava com minha própria boceta que era a reencarnação de Torquemada e Hitler.
- Liga não, "fräulein". A vida não é justa. Ademais, o bonitão é bissexual.
- E daí? Não deixa de ser gostoso por isso...
- Ah, esqueci que você aprecia...
- E agora, o que fazemos? - esqueci de novo que minha interlocutora não era minha amiga de faculdade. A loucura da situação estava me afetando.
- Continuemos o papo. Tô gostando de conversar com você.
- Mas... Vão rolar novas e terríveis revelações reencarnatórias?
- Não! Você, digo, sua boceta fecha o ciclo reencarnacionista, a tríade mística.
- Diga-me uma coisa... Por que nunca consigo depilar você completamente?
- Porque adoro meu bigode.
- Por que fico mais excitada quando estou menstruada?
- Porque me agrada o encarnado do sangue.
- Por que fico úmida com cenas de campos de concentração?
- Preciso responder isso?
- Você é um monstro!
- Não! Não sou e não fui! Fui uma vítima da História, assim como Judas Iscariotes, Vlad, Pol Pot, Jack O Estripador! Fizemos o trabalho sujo, que tinha de ser feito mas ninguém tinha coragem de fazer!
- Chega! Não quero ouvir mais nada! - fechei abruptamente as pernas, ergui-me da cama, vesti minhas roupas, pedi um táxi - Artur, no final das contas mostrou ser um "gentleman", tinha pago a conta.
Embarquei. O motorista me olhava pelo espelho retrovisor de uma maneira interrogativa. A julgar pela expressão de sofrimento estampada no meu rosto, indubitavelmente concluíra que eu fora abandonada. Devia estar se perguntando se meu parceiro se fora antes, durante ou depois do sexo. Imersa em meus pensamentos, distraí-me por um breve instante. Abri as pernas.
- Cof! Sua "schlamp"!
Cerrei as pernas rapidamente. O condutor olhou espantado pelo retrovisor.
- Celular... - disfarcei, dando um meio sorriso apagado.
Enfim, o táxi parou em frente ao prédio, meu prédio! Lar, doce lar! Certamente, sentir-me-ia mais segura, mais forte, no interior de meu apartamento, meu cantinho, meu refúgio do mundo. Paguei a corrida, o táxi se afastou. Acessei o "hall" e respirei fundo. Teria de subir pela escada até o quarto andar, o elevador, pra variar, estava quebrado. Pus minhas mãos entre as pernas e comprimi com força. Iniciei a subida e não parei, degrau a degrau, alheia aos aflitivos e roucos grunhidos de minha vagina. Abri a porta de meu apartamento com veemência, o impacto da maçaneta contra a parede provocou um tremendo estrondo e um grande buraco. Segui às pressas até o quarto, posicionei um pequeno espelho na cabeceira da cama - precisava acabar com o suplício - escancarei as pernas.
- Cof! Cof! Você está sendo má comigo, merecia um castigo, uma boa foda. Mas não vou te foder porque evidentemente não posso foder a mim mesmo. Além do mais, estou com uma vontade incontrolável de discursar... "Consegui meus êxitos simplesmente porque, em primeiro lugar, me esforcei por ver as coisas tais quais elas são e não como desejaríamos que fossem; segundo, porque, formada a minha opinião, nunca permiti fraquezas que me convencessem do contrário ou me levassem a abandoná-la; terceiro, porque, em todas as circunstâncias, sempre cedi à necessidade, quando como tal a tinha reconhecido. Hoje que o destino me permitiu tamanhos sucessos não serei desleal a esses meus princípios fundamentais..."
- Para! Esse sotaque, essa entonação me dão calafrios! Não quero mais ouvir sua voz!
- Você pode me calar fechando as pernas, Deus vai me calar à zero hora, mas não ficarei em silêncio para sempre! Um dia tornarei a ser homem e poderei terminar meu trabalho de purificação! A raça ariana prevalecerá sobre as inferiores e terá restabelecida sua gló... hum... hu...
Senti um aperto no coração, uma pressão no crânio, uma secura nos lábios, minhas mãos tremiam, todo meu corpo tremia. Sentia-me uma frágil boneca nas mãos de uma menina má chamada Deus, sentia-me um nada. Sentia-me mal, muito mal. A menina má arrancava minha cabeça, meus braços e pernas. Ruí. Desmoronei. Desabei. Rompi em prantos, chorei como nunca havia chorado. Entre minhas pernas, gemidos. "Cala a boca!" - gritei. Ele não se calou. Daí, veio o surto, o colapso total. Segui até a cozinha, saquei uma faca da gaveta do armário, cortei a mangueira amarela bem rente ao fogão, enfiei na boceta e abri o gás.
- Não!!! Gás não! Gás não!!!
Minha mente estava vazia. Em meu acesso de loucura, uma única, premente, desesperada necessidade: calar a voz! Peguei a caixa de fósforos, abri, retirei um - de minha boceta vinham sílabas desconexas - friccionei a extremidade contra o abrasivo... Clarão, explosão, dor, negrume...
Ouvi vozes, distantes. Abri lentamente os olhos, minha visão estava embaçada, meu corpo doía. Um vulto branco aproximou-se, voz de mulher.
- Ah, acordou finalmente.
- Onde estou?
- Hospital Central.
- O que aconteceu?
- Vazamento de gás, segundo o perito. Por sorte uma viatura do Corpo de Bombeiros passava em frente ao seu prédio no momento da explosão... Deus deve gostar muito de você.
- É. Ele me adora. Como estou?
- Você teve queimaduras de terceiro grau em sessenta por cento do corpo. Mas não se desespere, hoje em dia existem ótimos cirurgiões plásticos especializados nessa área. Agora, descanse...
- Doutora, uma última pergunta... A senhora ou alguém de sua equipe ouviu algum som estranho... proveniente... do meu corpo?
- Não, não ouvimos nada... Descanse.
Fechei os olhos. Apesar da dor, sorri. Eu vencera.
Muitos meses e muitas cirurgias depois, voltei às minhas atividades. Revigorada, refeita, quase perfeita. Dispensei o terapeuta, não precisava mais dele. Precavida, comprei um vibrador "Long Dong Extra G". Tudo ia bem, até o dia em que almocei uma apetitosa salada de repolho seguida de um saboroso doce de batata-doce, de sobremesa. Tenho certeza que meu ânus não só expeliu o flato como ainda proferiu um sonoro e efusivo "Oi!". Não foi nada fácil passar o dia com "Long Dong" enterrado no rabo, mas, como disse Bruce Lee, o filósofo: "Quem quiser vencer deve aprender a lutar, perseverar e sofrer." Sábio Bruce.

Carlos Cruz - 24/07/2009

(*) Os trechos de "Mein Kampf", o fragmento do discurso de Adolf Hitler e a frase de Bruce Lee foram extraídos da Internet.

A Estática Estatística da Estética ou O Filme da Sessão da Tarde



"Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade." Eclesiastes 1:2

"El Comienzo". Maria Imaculada da Silva era uma menina bonita, muito bonita, bonita ao ponto de permitir folgadas superadjetivações, linda, a mais costumeira. Desde muito pequena, chamava a atenção de parentes e vizinhos, suscitava elogios de todos aqueles cujo raio de visão alvejasse, ainda que de raspão ou fortuitamente, seu rosto angelical. "Que menina linda!" - era a frase recorrente. Embora integrante da comumente e injustamente desclassificada classe dos não favorecidos, embora seu vestido estampado, florido e andrajoso aparentemente não combinasse com sua estampa, embora suas mãos calejadas de pueril lavradora causassem espanto nos agraciados por seu toque, a menina alheava circunstâncias desfavoráveis e seguia esbanjando beleza e encanto. Seu João e Dona Efigênia, os jubilosos genitores de tão preciosa criança, conquanto analfabetos, modos rústicos e ideais modestos, vislumbraram possibilidades de maiores regozijos, inscreveram a filha no "Miss Guaranapiacaba Mirim", badalado concurso de beleza promovido pela Rádio Guaranapiacabana, a emissora local. Não teve para ninguém, Maria faturou o primeiro lugar, sem esforço, sem agastamento, sem sufoco, sem alvoroço. Era o sopé da montanha, o início da escalada.

"Carpe Diem". Maria adorava ser admirada, elogiada, amada, mormente em virtude do poder magnético e venturoso que parecia advir de sua formosura. Sempre rodeada de pessoas, de sorrisos, pródiga, distribuía felicidade à mancheia e isso a fazia feliz. Prazer maior, somente quando cuidava de seu jardim, que, dado o fato de compor-se tão-só de uma solitária roseira, não correspondia fidedignamente à definição do termo. Todavia, Maria nada via ou sabia ou queria saber quando defrontava sua viçosa roseira de rosas vermelhas. Quedava-se horas a regar, adubar, podar, afofar a terra do canteiro e, sobretudo, a maravilhar-se com o frescor perfumado e escarlate emanado das flores, os belos rebentos de sua protegida e confidente. Sim, confidente. A menina tinha o hábito de falar com a roseira. Certa vez, após sofrer uma reprimenda materna por haver-se empanturrado de rapadura, ela, aos prantos, desabafou: "Você é que é feliz, linda, cheirosa, bem-cuidada, vive apenas para ser admirada, para ser mimada, para ser amada... Ah, como eu queria ser você!"

"Déjà Vu". O tempo passou, Maria ingressou na adolescência, cada ano, cada mês, cada dia mais linda. Aos quinze anos, poder-se-ia referi-la, sem receio de recair em super-estimas, como uma mulher deslumbrante, ainda que, à luz dos dogmas sociais, das leis e seus códigos, mulher não fosse. Estava na plenitude de sua beleza. Não tardou para que um olheiro de uma famosa agência de modelos deitasse seus oportunistas e bem-treinados olhos sobre a bela recém-debutada. Depois vieram, numa célere sucessão, tratamentos de beleza, roupas de marca, capas de revistas, passarelas, holofotes, "flashs" e mais "flashs", carros importados, jóias, fama, fortuna, festas. Mudou-se, junto com os pais, o cachorro e a roseira para uma casa suntuosa localizada num bairro nobre da capital. Cobriu-se e aos seus de todo luxo e conforto que o muito dinheiro podia proporcionar. Instalou-se no melhor quarto, instalou seus genitores no quase melhor quarto, mandou construir uma réplica de sua mansão para abrigar Pelanca, o cão da família. Quanto à roseira de belas rosas vermelhas, ganhou um pomposo jardim com sistema de rega automático, terra rica em húmus, bem drenada e enriquecida com adubo de excelente qualidade, à base de esterco animal, composto orgânico, farinha de ossos e torta de mamona. Ganhou também um jardineiro, mas perdeu a confidente. Imersa até o finamente adornado pescoço em desfiles, ensaios fotográficos, campanhas publicitárias, comerciais televisivos, viagens, "flashs" e outros "flashs", Maria, a "top top model", não tinha mais tempo para colóquios monologuistas vegetativos sem resposta. O tempo passou, a maioridade chegou, a fama aumentou, a conta bancária engordou. A nau Maria, ou melhor, a nau Letícia Müllersen - Maria Imaculada da Silva até era um nome bonito, mas não auspicioso à carreira, segundo seu agente, que apreciava expressões da moda - ia de vento em popa, a todo vapor, rumo à total dominação mundial. As mulheres, novas, velhas, feias, bonitas, magras, gordas, todas todas, queriam vestir as roupas de Maria, maquiar-se como Maria, falar como Maria, andar como Maria, jogar os cabelos como Maria, ser lindas, ricas, famosas, felizes como Maria. Desejavam ser Maria.

"Las Rosas No Hablan". À medida que sua dona ascendia na profissão e obtinha o que impossível parecia, a saber, novos acréscimos de beleza, concomitantemente, e a despeito das reiteradas negligências, esquecimentos por indisponibilidade presencial e outras razões em geral, a roseira florescia a olhos vistos, copiosas e faustuosas rosas vermelho-escarlate, vermelho-afogueado, vermelho-carmesim, vermelho-sangue, vermelho-paixão. Jardineiros, mordomos, cozinheiras, arrumadeiras, visitantes e vendedores de enciclopédias, escorredores, panelas, desentupidores e badulaques afins, detinham-se boquiabertos ante tamanha manifestação de beleza natural. Alguns prosternavam-se, braços aos céus, rendendo louvores ao Criador. Outros choravam, outros riam, outros choravam e riam. A magnificência aliada ao inebriante aroma fazia assomar nos espectadores ao redor e derredor uma espécie de transe místico, um deslumbramento letárgico, agradável, que aflorava sentimentos divinamente humanos. Impassível, alheia a tudo e a todos, majestosa, sagrada e lúbrica, a roseira balançava seus ramos ao sabor dos ventos, refletindo, cobrindo o mundo e os corações com seu edredom de luz, rubro e sereno.

"Mutatis mutandis". Maria não estava feliz. Não era feliz. Não mais. Tamanha incidência diuturna de elogios lha tornaram uma mulher volúvel, um poço de caprichos. Ademais, a diária e inflexível disciplina imposta por seu trabalho a oprimiam. Muito exercício físico, pouco e insosso alimento. Ah, que saudade da rapadura de sua mãe! Afastava, com hercúleo e penoso esforço, tais pensamentos, quando sobrevinham. Atribulada, foi a mais uma festa, onde uma amiga atenciosa apresentou-lhe outra amiga que se tornaria, doravante, sua inseparável melhor amiga. Alva como a neve, detinha as chaves da felicidade, bastava aspirá-la por um canudo e a vida de Maria se enchia novamente de alegrias e bem-estares. É bem verdade que passadas poucas horas de ausência da amiga, Maria quedava-se saudosa e macambúzia, todavia, bastava telefonar que ela voltava, fresca e pura. O ciclo repetiu-se, amiúde, até a noite do excesso excessivo, combinação explosiva de múltiplos mililitros de álcool e altas dosagens de branca amiga pulverizada. Semi-implosão, deus-nos-acuda, corre-corre, ambulância, hospital, coma - sequência imediata. Polícia judiciária, investigação, oitivas, chororô, mentiras-por-uma-boa-causa-própria, retorno do coma, meio-alívio-meio-preocupação-ela-vai-caguetar-a-gente?, sequência-meio. Capas de revista, capas de jornais, noticiários televisivos, programas policiais, tablóides, perdas de contratos, descensão, execração pública, "persona non grata", esparramo na pista, choro, engorda, sequência-bem-próxima-do-fim.

"Sed fiat voluntas tua". Maria estava à beira da falência, moral, financeira e pessoal. Tornara-se o alvo predileto da mídia fanfarrona e das pseudo-amigas farofeiras. Virara motivo de galhofa, uma velha piada sem graça. Alguém que tinha sido mas não mais era. Uma quase-ninguém. Os desfiles acabaram, as festas findaram, os amigos se foram, o telefone emudeceu, o "flash" da câmera queimou, a conta bancária definhou, a cortina se fechou, a fonte secou. Seus pais tentavam, em vão, levantar-lhe o astral, incutir-lhe ânimo, mostrar a ela que a vida prosseguia e, enquanto vida havia, existia também a esperança de dias melhores. Alheia a tudo, ela alheava-se cada vez mais, agonizava em sítio privado. Só pranto e quase nenhuma comida, debilitava-se, murchava, pouco a pouco, como uma bela flor num copo d'água. Lembrou-se de sua velha amiga, a roseira de belas rosas vermelhas que, a despeito dos dissabores de Maria, continuava tão linda e viçosa como sempre fora. Voltaram as conversas monopolares, agora em forma de desabafos, queixumes, lamúrias, predominantemente. Meses depois, o telefone tocou. Sobressaltada, a esquálida Maria arrastou-se até o aparelho. Atendeu. "Alô." "Maria, é você?" A voz inconfundível do agente, o primeiro, o descubridor, o incentivador, fez seu coração disparar. Convidá-la-ia a assinar um novo contrato, recomeçaria de onde parou, teria sua vida de volta? "Sim, sou eu." "Maria, sei que não é um bom momento, mas, sabe como é, os acionistas me cobram e eu não posso arcar com tudo sozinho... Seu problema afetou diretamente as empresas que faziam uso da sua imagem, as vendas despencaram. O mercado da moda é volúvel, qualquer abalo, por menor que seja, e as pessoas deixam de comprar essa ou aquela marca... Bom... Vamos ao que interessa. As empresas se uniram para nos processar, pedem algo em torno de cem milhões de dólares de indenização... Tenho de dividir esse prejuízo com você, afinal, foi você quem causou o estrago. Te dei tantos conselhos, menina... Bem, sua situação financeira está caótica, você e seus amigos festivos cheiraram quase todo o seu patrimônio. Maria... teremos que vender a casa... Maria... você está ouvindo?" Desligou o telefone. Seguiu para o jardim, tirou as sandálias, atravessou a pequena cerca de madeira, postou-se ao lado da roseira. Rosto banhado em lágrimas, fechou as mãos com firmeza ao redor do caule espinhoso, sangue e lágrimas a regar o solo, mirou fixamente a rosa mais bela e desejou, ardentemente, abandonar o mundo dos homens, transmutar-se em vegetal, deixar de ser amiga para se tornar irmã, ser uma roseira. Sentiu um formigamento, primeiro nas plantas dos pés, depois por todo o corpo. Baixou os olhos, fitou os pés. Raízes! Brotavam raízes de seus pés! Por instantes, teve medo. A seguir, contentamento e paz, um sentimento que, de tão intenso, deu-lhe a certeza de haver finalmente encontrado a ansiada felicidade. Suas esqueléticas pernas uniram-se, seus ossudos braços afinaram-se ainda mais, sua pele escureceu, surgiram protuberâncias espinhosas. Sua face, cuja beleza, a despeito das agruras da vida, não se havia perdido, foi-se tornando rubra, surgiram pétalas carnosas e de um vermelho muito vivo. Por fim, transmutação finda, um final e um começo. Sai de cena a bela Maria Imaculada da Silva. Dá lugar à mais linda roseira de uma rosa só que já existira na superfície da Terra. Seu João e Dona Efigênia rocuraram a filha por alguns meses. Com o passar do tempo, arrefeceram, mas ainda mantém a esperança de que ela apareça, inopinada e linda. A mansão foi vendida e vendida e de novo vendida. Muitos vieram, se foram e, invariavelmente, contemplaram as entrelaçadas roseiras irmãs e sentiram seu perfume. Ainda que por instantes, sentiram-se feios, sujos, efêmeros, tristes, almas em decomposição. Húmus humanos.

Carlos Cruz - 30/07/2009

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Luces de Lunes





Oigo el melancólico canto del pájaro
negro, compañero leal de las mañanas
Lo oigo, aunque el sonido de las bocinas
estridentes, de los coches que pasan
como rayos fugaces y perversos
se esfuerce por sofocarlo...

Oigo un lejano pitido de un tren
sobrecargado con los vicios
de los hombres adinerados y sus obreros muertos
Oigo los gritos felices del lechero moreno:
"La leche! La leche blanca y buena!"
La ciudad se despierta...


El sol, implacable, dispara sus dardos
de luz, por las rendijas y calienta...
¡Calienta, sol! ¡Calienta!

Me despierto, a disgusto
La cabeza, todo el cuerpo me duele
Me acuerdo de la noche
las charlas animadas, las tonterías
la borrachera, las sonrisas fáciles
los espíritus bailantes en el humo del tabaco y maría

Me acuerdo de la mujer reluciente y flotante
Su sonrisa rubra, sus ojos ardientes
su bailado frenético y suave, su olor de jazmín
Me acuerdo del descompaso de mi corazón
del ardimiento de la sangre, de la parálisis del cuerpo
Del magnetismo irresistible, mi cuerpo, mi alma clamaban: La quiero!

Extasiado, precipitado, me acerqué a ella
Pero nada dije, ni fue necesario
Mis ojos lo contaban todo, desnudaban mi corazón sin pudor
El beso hizo bajar el cielo, oí la sinfonía de los ángeles
Mientras el fuego del infierno incendiaba mis órganos
Me hice lava, hielo, huracán, tormenta, rocío, todo y nada


Me acuerdo de la noche, ¡esta noche!
el encuentro desenfrenado, húmedo, estruendoso
de nuestros cuerpos en llamas
llamas de deseo, pasión, necesidad apremiante de tenernos
mutuamente, aspirar nuestros olores, nuestra transpiración,
aspirarnos, consumirnos, ahogarnos en un océano de amor

Pero, la noche dio lugar al día, la noche se ha ido
La mujer resplandeciente se ha ido, se ha disipado
como la niebla del invierno por la mañana
como un sueño bueno al cual intentamos, inútilmente
apegarnos, pero se nos escapa, huye para lejos
Dejándonos solos, medio tristes, medio felices

Otra noche vendrá... Y yo allá estaré, sumergido,
enamorado, loco soñador, a buscarla...

Carlos Cruz - 02/09/2009

Imagem: "The Dangerous Liaison", de René Magritte

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A Peste





Primeiro, foram os gatos sem rabo. Depois, vieram as galinhas peladas. Estranhas manchas azuis surgiram no corpo das vacas. Cavalos apareceram totalmente sem crina. Atônito, o fazendeiro contratou, de uma só vez, os serviços do veterinário, do padre e da rezadeira. Em vão. Fosse zoonose rara, diabo zangado ou invejoso mau-olhado, a verdade é que nada tinha mudado. Era muita conjectura para nenhuma solução. Antevendo o pior, o fazendeiro cogitava escambos, compras e vendas imobiliárias, quando um berro delator elucidou o mistério: Pedrinho, o filho do caseiro, serrava o chifre do bode, que, nada satisfeito com a desonrosa mutilação, alardeava ao quatro ventos o torpe crime em andamento. Dona Maria, mãe de Pedrinho, de chinela em riste e vociferando imprecações, surge em cena, no exato momento em que o pequeno peralta debanda velozmente para as bandas do chiqueiro. Encolhido em meio à podridão fedorenta, ouve a voz ameaçadora de sua genitora: "Cadê aquela peste? Quando eu puser as mãos nele, ele vai ver o que é bom pra tosse!" Foi quando Pepe, o porco, sonora e nefastamente, espirrou.

Carlos Cruz - 03/05/2009

quinta-feira, 30 de abril de 2009

A Trompa de Falópio





Falópio não toca trompa
ainda que lhe sobeje pompa
carece de talento.

Versejar sobre o intento gerativo
Parir a seco ostras sem pérolas, sem lauréis
Tornar-se trama de mamas e menestréis
Não querer não ser mas ainda assim existir
Criar e procriar as criaturas que criarão e procriarão
Genitora pai de ser (o sacripanta do inferno cão).

Fêmea que doa à toa numa boa a coroa
Parafraseia a farsa falha chauvinista dos sem-chave
Lidera a rústica rebelião aparvalhada das esteiras de palha
Estorva a benemesse dos rufiões filhos da pútrida maquiada
Finca o ranço dos descamisados ornamentados com colares de ouro
Tonifica seu tônus, lubrifica seus ânus, flâmula causticante.

Abre-se, Césamo, para o porvir das ninfas criadas de Hades
Ardam, escapistas alpinistas de vulvas capilares proeminentes
O fusca ofusca suas vicissitudes vãs de pulhas ordinários
Crentes pernósticos atabalhoadamente jogam seus dados sovinas
Dementes, descontentam e gargalham euforicamente
Ser mulher é melhor que ser uma inútil e burra golfada de porra.

Gosto do gosto da uva
Porque ma tenho, linda e má.
Pairo
Gozo
Avalancho.

Volátil
Vulva.

Carlos Cruz - 29/03/2009

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sub ou Sobe e Desce ou O Insubstituível, A Caveira Sorridente e A Sôfrega e Lenta Degustação da Iguaria Gélida


Mangueira. Pico do morro. Pico do mundo. "Tem pico?" "Não. Preto e branco só. Vai?" Traficantes traficam. Crianças-descalças-de-bermudas-coloridas-sem-camisa soltam pipa. O sol escalda. Corpos enegrecidos ardem nos microondas movidos a borracha e gasolina, exalam cheiro de churrasco. Homens reunidos em toscos botecos improvisados bebem sofregamente e riem desdentadamente.  Cantarolantes mulheres morenas estendem roupas no varal. Ladram vira-latas com pelada. Mais adiante, outras crianças jogam pelada. No barraco do Sobral, Elvira, pelada e suada, estendida sobre a colcha bordada com o escudo do Flamengo, sorve, lânguida, os fumos do baseado. Passa o bagulho para Tião Boca Quente, que dá uma bola, alegremente.
- Porra, Vivi, não sei o que é melhor, foder você ou fumar um depois.
- Que porra é essa, Tião? Quer dizer que você prefere fumar um bagulho do que me foder? Você acabou de acabar comigo agora. Sou menos gostosa do que um bagulho. Puta que o pariu!
- Que que isso, potranca. Cê sabe que você é especial, a minha cadelinha particular.
- Sua cadela particular o cacete! Pertenço ao Sobral. Com você é só sexo. Eu pego você.
- Pega eu porra nenhuma! Esse negócio de mulher dizer que pega homem é uma babaquice modernosa. Eu sou o Tião Cabuloso, sou bonito, gostoso e maldoso. Ninguém se mete comigo. Nem o Sobral.
- Tá legal. Você é muito mal... Ih, cacete! Lá vem o Sobral!
- Ai, meu Jesus Cristinho!
          Tião salta da cama, abre as portas do guarda-roupa abarrotado, tentando, desesperadamente, entrar.
- Hahahahaha! Você é um covardão. O Sobral, a essa hora, deve estar rindo à toa. Hoje ele vai ser promovido de empacotador a caixa do supermercado.
- Porra, não faz mais isso não. Quase me mata de susto.
- Ah, tadinho... Ficou assustadinho, foi? O coração tá batendo rápido, tá? Vem cá que vou fazer ele bater mais rápido ainda.
          Sexo.

- Seu Sobral, pode vir à minha sala um minuto? - a cara do gerente não era nada boa.
- Claro. "Babaca. Nunca gostou de mim. Se fudeu, vai ter que engolir minha promoção. Vai ter que ME engolir. Que sorte o dono dessa bosta ter ido com a minha cara..."
- Por favor, Seu Sobral, encoste a porta e sente-se... Seu Sobral, há quanto tempo o senhor trabalha conosco?
- Doze anos.
- O senhor gosta de trabalhar aqui?
- Sim, gosto muito. "Porra! Tem que ter interrogatório? Por que esse filho da puta não diz logo que fui promovido?"
- O senhor sabe das dificuldades pelas quais a empresa vem passando?
- Hã?... Dificuldades?... Não. Sei não.
- O senhor sabia, Seu Sobral, que todo mês a empresa promove uma reunião aberta à participação de todos os funcionários, para tratar de assuntos relativos à empresa?
- ... É... Já ouvi falar.
- O senhor sabe ler, Seu Sobral?
- Sei, sim senhor.
- O senhor costuma olhar o quadro de avisos, Seu Sobral?
- Às vezes, quando dá tempo.
- Costumamos afixar o memorando que informa as datas das reuniões com um mês de antecedência. O senhor já viu algum memorando desses, Seu Sobral?
- Não. - Sobral estava começando a ficar irritado. Aquela mania do gerente de ficar repetindo o nome das pessoas, o tempo todo, era extremamente irritante.
- Bem, Seu Sobral, tentarei ser o mais direto e objetivo possível.
- Claro. "Ah, tá de sacanagem!"
- A nossa empresa, Seu Sobral, está no mercado há mais de cinqüenta anos e sempre foi uma das líderes em nosso segmento. Nossa filosofia de privilegiar o cliente, primando pelo bom atendimento, embasados na máxima que reza, acertadamente, que o cliente tem sempre razão, elevou-nos a um patamar superior com relação às concorrentes. Estamos sempre preocupados em criar meios que façam o cliente sair de nossa loja com vontade de voltar. É nosso diferencial: inovar, idealizar e implementar. Atrair o cliente, sempre, até o mais recalcitrante. E com isso crescer. Idéias, Seu Sobral. As idéias sempre agregam valor ao nosso negócio.
- Sei... "Caralho. Sempre, sempre, sempre... Ele não disse que ia ser direto?"
- O senhor, Seu Sobral, com sua atitude indiferente, jamais participando das reuniões, demonstrando total desinteresse pela empresa, tornou-se um perigo para o futuro de nosso negócio.
- Perigo? Como assim? Eu sou da paz.
- O senhor não entendeu, Seu Sobral. Os funcionários são vistos pela empresa como colaboradores e devem se portar como tal, para o bem de todos. Se todos se engajarem no objetivo de ajudar a empresa a crescer, ela cresce e todos são beneficiados. O senhor, Seu Sobral, não teve um aumento salarial no mês passado?
- Tive. Seis reais de aumento. "Filho da puta!"
- Viu só? Isso foi fruto do esforço de todos pelo bem da empresa. Mas há aí uma injustiça: o senhor teve um aumento salarial em virtude do esforço alheio. O senhor, Seu Sobral, em nada contribuiu para isso.
- Como não contribuí? Não chego atrasado, nunca faltei, faço meu serviço direito. - a irritação recrudescia perigosamente.
- Mas não faz nada além disso, Seu Sobral. A empresa não quer esse tipo de funcionário. Seu Sobral, lamentavelmente fui incumbido de lhe dizer que o senhor não integra mais nosso quadro de funcionários.
- O quê? Como é? - a irritação deu lugar à confusão.
- O senhor está demitido, Seu Sobral. Passe no departamento de pessoal para assinar a rescisão. A secretária lhe informará sobre o valor que tem a receber.
- Mas vocês não podem me demitir! Trabalho aqui há doze anos! Sou o funcionário mais antigo! Preciso desse emprego! Tenho família pra sustentar!
- Seu Sobral, não torne as coisas mais difíceis. Saia, por favor. - o gerente abriu a porta.

          Sobral não foi ao departamento de pessoal. Seguiu para o morro, precisamente ao barraco de Tonho Caolho, o gerente do tráfico local. Antes de entrar foi abordado pelo soldado de chinelos havaianas, bermudão e camisa do Flamengo, com um AR-15 pendurado no ombro. A bandoleira parecia grande demais, o cano da arma quase encostava no chão.
- O que tu quer aqui, Seu Sobral? - o menino tinha sido vizinho de Sobral, mudara-se para um barraco melhor depois que começara a trabalhar no tráfico.
- Quero falar com o Caolho.
- E o que tu quer com ele?
- Comprar uma arma.
- E pra que tu quer uma arma?
- Coisa minha.
- Aí, se tu quiser eu tenho uma 9. Tá novinha, olha aqui. - tirou a pistola da cintura, uma Glock 9 mm, entregou a Sobral.
- Quanto você quer na arma?
- Olha, se fosse pra outro, eu ia pedir mais, mas como é pra tu que é sangue, vou fazer um preço legal. Me dá trezentos e tá tudo certo.
- Segura aí. - Sobral pagou. Havia recebido seu pagamento no dia anterior. Aquele dinheiro seria para fazer compras no mercado e pagar a farmácia. Seria.
- Também preciso de algemas.
- Vai brincar de polícia, tio?
- Não. Vou brincar de juiz.
- Ah, tá. Tenho aqui uma que roubei de um verme que quebrei.
- Quanto é?
- Né nada não, tio. Tenho outras.
- Valeu.
- Já é... Olha lá o que tu vai fazer com isso, hein, tio?

          Silveira olhou o relógio. "Opa! Hora do almoço." Nem precisava conferir as horas, seu estômago era tão metódico quanto o próprio Silveira, cuja alcunha, pronunciada entredentes pelos funcionários do supermercado, sempre que ele passava com sua costumeira expressão de fastidiosa insatisfação, era "O Redondo", uma claramente irônica alusão à sua obesidade combinada com sua mecânica e britânica pontualidade. Trancou a porta de seu escritório; como de hábito, girou a maçaneta três vezes para conferir. Depois, aproximou-se de Joana, a fiscal de caixa, dizendo-lhe as mesmas palavras que, invariavelmente e há mais de três anos, dizia todos os dias: "Joana, vou almoçar. Se tiver algum problema que não consiga resolver, me ligue. Você tem meu número?" A fiscal repetiu a resposta de sempre: "Tenho. Bom apetite."  O gerente caminhou até o estacionamento, entrou no carro, introduziu a chave na ignição. Antes de acionar a partida, sentiu algo frio em sua têmpora e ouviu uma voz grave e nervosa: "Não grite, não faça nenhum movimento brusco, não seja burro se não quiser morrer aqui mesmo. Sem sair do carro, vá para o banco do carona, bem devagar." Era uma pistola. Era Sobral. Era Sobral com cara de mau apontando-lhe uma pistola e ditando-lhe ordens. Trêmulo, obedeceu. Sobral entrou no automóvel, colocou algo no banco traseiro e, com a arma apontada para a cabeça de Silveira, passou-lhe as algemas. "Coloque no braço, bem devagar." Assim fez. Sobral colocou a outra, comprimindo ambas. "Tá muito apertado!" "Cala a boca, porra! Quem te autorizou a falar? Caralho, por que o banco tá molhado? Você molhou as calças, seu covarde filho da puta?" Sobral deu a partida e manobrou o carro, direcionando-o para a saída. "Não tente nenhuma gracinha senão te encho de bala. Não tenho mais nada a perder." O trânsito, àquela hora do dia, estava bastante intenso. Silveira permaneceu calado até acessarem a Estrada do Joá. "Para onde você está me levando?" "Para sua casa." "O que você quer na minha casa, Seu Sobral? A bronca do senhor é comigo, deixe minha família em p..." O bofetão impediu a conclusão da frase, um filete de sangue escorreu do nariz de Silveira, passou por seus lábios e gotejou na camisa branca de seda. "Olha o que você fez! Não mandei calar a porra da boca, caralho!? Dá um jeito de limpar essa sujeira! Vou repetir: se algum polícia parar o carro, dou um tiro na sua cabeça. E pára com essa porra de 'Seu Sobral', ô caralho!" Silveira, com dificuldade, retirou o lenço do bolso da camisa, limpou o sangue do rosto. A mancha na camisa não havia como limpar. Trafegaram mais alguns quilômetros, em silêncio. À certa altura, Sobral parou o carro às margens da via, em um local onde não podiam ser vistos pelos demais motoristas. Desligou o motor, retirou a chave da ignição. Estavam à beira de um despenhadeiro. O sol de meio-dia refletindo seus raios na água azul do mar proporcionava um exuberante e ofuscante espetáculo. Mas Sobral não estava ali para admirar as belezas naturais do local. Tinha uma tarefa a cumprir. Sempre apontando a arma, saiu do automóvel e ordenou: "passe para o banco do motorista!". Silveira, antevendo o pior, demorou a atender à ordem. "Anda, porra! Não tenho o dia inteiro!" O gerente, suando em bicas, volveu o corpo para o assento esquerdo. Sobral tirou algo do bolso da calça, entregando a Silveira. Um tubo de cola Super Bonder! "Agora, tire a tampa e passe nas mãos. Nas duas!" "Olha, Seu Sobral, por favor... Sei que fui duro com o senhor... Mas não é nada pessoal, o dono da empresa mandou enxugar o quadro de funcionários... Ordens são ordens, eu tinha de cumprí-las..." "Isso! Ordens são ordens! Então cumpre a minha ordem e besunta as mãos de cola! Anda, porra! Ou prefere levar um pipoco na cabeça?" Silveira, chorando copiosamente, passou a cola nas mãos. Sobral retirou mais dois frascos do bolso. "Toma! Passa mais!" O gerente esvaziou os tubos. "Agora, agarra o volante, segura bem firme!" "Não faça isso, Seu Sobral... Por favor, eu imploro! Tenho família!" "Ah, você tem família, seu filho da puta? Por acaso você se importou quando eu disse a mesma coisa lá no seu escritório? Não! Você cagou para mim! Cagou para minha família! Como foi que você disse? Ah, sim: 'Seu Sobral, não torne as coisas mais difíceis'. Segura a porra do volante!" - brandiu a arma perigosamente. Silveira apertou o volante com força, o rosto banhado em lágrimas. Sobral aguardou alguns minutos, contornou o veículo, abriu a porta do carona, repôs a chave na ignição e retirou aquilo que havia depositado no banco traseiro: um recipiente de plástico, verde, do tipo usado para guardar combustível, cujo conteúdo despejou no interior do carro. O forte cheiro de gasolina fez as súplicas e o pranto de Silveira aumentarem consideravelmente de intensidade: "Não faça isso, Seu Sobral! Eu devolvo seu emprego! Aumento seu salário! Dou tíquete-alimentação, plano de saúde, vale-transporte!... Uma promoção! Te dou meu cargo! Dou o que o senhor quiser, mas, por favor, não faça isso!" Sobral acendeu o fósforo. "Isso é pelo bem da empresa, 'Seu Silveira'. O senhor, com sua atitude agressiva e pedante, perseguindo e humilhando os funcionários, mesmo os mais dedicados, não agrega valor ao nosso negócio. Lamentavelmente, fui incumbido de lhe dizer que... o senhor está demitido! Nos vemos no inferno, babaca!" "Não! Não! Nãããão!" Sobral lançou o fósforo, as chamas rapidamente espalharam-se pelo interior do automóvel. Silveira gritava horrivelmente. Sobral lançou o galão de combustível, devidamente tapado, no porta-malas e empurrou o carro para o precipício. Ouviu a explosão, mas não ficou para assistir ao show pirotécnico. Célere, correu até a estrada, à margem da qual já alguns curiosos paravam seus veículos e olhavam a fumaça com aquela cara idiota típica dos curiosos. Como sempre acontecera ao longo de sua vida, sua figura franzina, comum, passou despercebida. Aproveitando-se do trânsito lento, embarcou num ônibus com destino à Barra da Tijuca.
- Parece que o acidente foi feio. - comentou o cobrador.
- É. Parece.

          "Sobral!"
- Porra, lá vem você de novo com essa brincadeira idiota. - tapa - rebola essa bunda, vai, minha vadia gostosa. - imobilidade - puta que pariu! Eu já tava quase gozan... Sobral!... - estupefação - eu posso explicar...
- Cala a porra dessa boca! Já matei um hoje, pra matar outro não custa. - mirava o lado esquerdo do tórax de Tião, sem tremer, firme, impassível, sem pensamentos, sem sentimentos.
- Eu não tenho culpa! Ela que quis me dar! Eu sou homem! - lençol urinado.
- Você é um grandessíssimo filho da puta covarde, isso que você é! - enfezou-se Elvira, esquecendo-se, momentaneamente, do perigo maior.
- Já mandei calarem a porra da boca! - silêncio sepulcral.
- Pega a cartela de azulzinha! - para a mulher.
- Hã?
- Pega a caralha da azulzinha na gaveta da cômoda! Aquela merda de remédio que eu tenho que tomar pra foder esse seu cu fedorento, sua vaca!
          Elvira obedece, tremendo de raiva e medo.
- Agora dá três comprimidos pra esse babaca!
- Mas, amor...
- Amor é o caralho, sua vadia do caralho! - o soco atingiu Elvira no pau do nariz; o melado, incontinenti, escorreu pela boca e chegou aos seios da mulher. Entre lágrimas e sangue, entregou as cápsulas na mão de Tião.
- Agora engole, traíra desgraçado!
- Mas, Sobral!
          Pistola na têmpora esquerda, cutucando.
- Engole!
          Os comprimidos descem goela abaixo, com a providencial ajuda do vinho Sangue de Boi no copo de requeijão ao lado da cama.
- Agora, vamos todos ver um filme. - Sobral, sempre apontando a arma para os amantes, segue até a cômoda, pega um DVD, retira o pequeno disco e o introduz no aparelho. Preme o play e a tecla de avançar, aperta o play novamente. Na cena, a atriz Belladonna encara uma trupe de seis negros dotados de enormes estrovengas que revezam nos orifícios da atriz. Sobral senta-se em uma poltrona, de frente para o casal de adúlteros. Tião desvia o olhar para a parede.
- Olha o filme, caralho! - o amásio obedece.
          Trinta minutos depois, Tião não mais sabia o que fazer para disfarçar a ereção. Sobral ergue-se, aproxima-se de Elvira, esbraveja:
- Chupa ele! - tapa na cabeça, segundos de olhar atônito - chupa o pau dele, vagabunda! - novo tapa na cabeça, mais forte.
- Mas, Sobral...
- Caralho! Você é surda ou o quê? Não vou falar de novo: CHUPA A PORRA DO PAU DESSE FILHO DE UMA PUTA!!!
          Elvira cai de boca. Chupa, lambe, chora, lambe, chupa, chora. Malgrado o pavor, o pênis de Tião é todo veias e rigidez, a glande roxa, inchada, parece que explodirá em carne, sangue e sêmen a qualquer momento. Após alguns minutos, Sobral retirou algo do bolso da calça... Um tubo de cola! Puxou Elvira pelos cabelos.
- Ai!
- Agora, esvazia isso no pau dele!
- Mas, Sobral, isso é cola!
- É mesmo? Não brinca. Tem certeza? - tapa na cabeça - passa logo essa porra no pau desse viado antes que amoleça! Rápido ou te dou um tiro na cara, sua piranha! - mais um tapa.
          Elvira descarregou o tubo de cola no pau de Tião, potente príapo condenado pelos efeitos do poderoso medicamento.
- Agora senta em cima dele!
- Mas... - porrada.
- SENTA NA PORRA DO CARALHO, CARALHO!
          Ela sentou. A queimação na vagina, provocada pela super-cola, produziu ainda mais lágrimas. Quanto a Tião, parece que a ação causticante do ultra-adesivo surtiu um efeito impossível: aumentou ainda mais o tesão - o pau latejava nas entranhas de Elvira. "Agora sim! Não gosta de foder, puta? Agora vai ter sempre um pau na boceta. E ainda pode dar o cu e chupar o pau dos outros machos filhos-da-puta. Eu não sou um bom marido? Responde, cadela!" - tapa na cara, mais lágrimas. "É..." Sobral amarrou Elvira em Tião e ambos na cama. Usou panos de prato para amordaçá-los. Quedou-se algum tempo fitando os corpos nus e seus rostos suplicantes. Subiu na cama, posicionou-se sobre eles, flexionou as pernas, encostou o pênis no ânus de Elvira, segurou seu queixo, forçando a cabeça para o lado até seus olhos se encontrarem. Voz gélida, tom baixo, disse: "Eu não sou um bom marido." E cravou-lhe o pênis, de uma só vez, no reto. Meteu, meteu, meteu, sem dó, até ejacular, um gozo raivoso, intenso, remissivo. Ainda arfante, introduziu o cano da arma no ânus de Elvira e atirou. Ela estremeceu e passou a debater-se. Mas não era ela, era Tião que tentava, em vão, livrar-se das amarras, enquanto emitia sons roucos e surdos. Dois tiros na cabeça e cessaram as convulsões. Sobral olhou os cadáveres, o sangue enrubescia o lençol branco e formava uma poça no piso de ardósia. Vomitou. Nauseado, lavou o rosto na pia da cozinha. Retirou do armário alguns frascos de álcool e um tubo de tinta spray. Letra de imprensa, escreveu na parede: "OS ALEMAO TRAIDOR TEM QUE MORRER. CV". Esvaziou os frascos de álcool sobre os cadáveres e os móveis do quarto. Ateou fogo. Foi-se.

          Caju. Cemitério São Francisco Xavier. 09:30 h. Chuva fina. Frio. Melancolia intermitente entrecortada por ruídos de motores e buzinas. Seis pessoas com trajes e óculos negros observam o esquife, confeccionado em madeira de lei e finamente ornamentado com cruzes douradas, ser devorado lentamente pela grande boca escancarada e sem dentes, enquanto ouvem, em silêncio, o salmodiar do clérigo: "O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos..." À cabeça de Sobral, sobreveio a lembrança do encontro, há semanas, com o crente filósofo maluco beleza e o papo do pó. Papo-meio-cabeça, total e interessantemente confuso, que oscilava entre a sina telúrica e inevitável do homem, a insustentável leveza do ser, o paralelo existente entre as grandes corporações multinacionais e os cavaleiros do apocalipse, o mito da caverna de Platão, a comunhão plena com o cosmos, a racionalização esdrúxula do prazer, a viagem astral por meio da cocaína e "do pó vieste, para o pó voltarás". Um baque surdo o fez sair de seus devaneios, a roldana pela qual passava a corda que sustinha uma das extremidades do caixão havia se soltado do eixo. O féretro, de qualidade, resistiu. O coveiro da outra ponta tratou de acelerar a descida. Durante o tradicional arremesso de cal, Sobral viu aproximar-se o Senhor Gustavo Araújo Pompeu de Menezes e Albuquerque, o todo-poderoso fundador e sócio majoritário da Rede Happy Client de Supermercados. Parou à beira da cova, lançou um olhar vazio, inexpressivo, para baixo, para o fundo. Sobral aproximou-se, postando-se ao lado de seu ex-patrão.
- Uma grande perda... (suspiro) Aí está um homem de quem se pode afirmar, sem receio de errar, que amava seu trabalho, um homem cujas idéias, indubitavelmente, agregavam enorme valor à empresa, um homem que não media esforços para atingir as metas propostas, que defendia apaixonadamente os interesses da empresa, um homem que dedicava-se, quase exclusivamente, ao seu trabalho, ainda que tal dedicação demandasse sacrifícios em sua vida pessoal. Enfim, um homem insubstituível. Quem poderia ocupar o lugar de tamanha competência?...
- Qual é mesmo seu nome?
- Sobral.
- Há quantos anos o senhor trabalha conosco, Sobral?
- Doze anos.
- Bem... Tenho uma proposta a lhe fazer... Se preferir, não precisa me dar a resposta agora... Funcionário Sobral, o senhor aceita o cargo de gerente do supermercado?
- Sim, aceito.
- Ótimo. Apresente-se amanhã, pela manhã, no Departamento de Pessoal.
- Sim senhor.
          Sobral foi o último a afastar-se do sepulcro. Antes, precisava dar o adeus derradeiro a Silveira. Correu os olhos em torno para certificar-se de que estava só, voltou as costas, abaixou as calças, abriu e rebolou a bunda cabeluda na direção do túmulo do finado gerente. Nauseabunda e ruidosamente, peidou. Corpo e consciência leves, sorriso nos lábios, ganhou a rua, diluiu-se na turba. Indiferente, insensível e barulhenta, a cidade entardecia.

Carlos Cruz - 10/04/2009