domingo, 4 de novembro de 2018

Crônicas Policiais V - A Vida Como Ela Não Deveria Ser



Há mais de vinte anos, época em que ainda era funcionário da MRS Logística, conheci um adolescente que estagiava no meu local de trabalho. Franzino, baixinho, rosto repleto de espinhas, retraído, tom de fala baixo, sempre de olho nos pés do interlocutor, um poço de timidez e introspecção. Estagiário em seção diversa daquela em que eu trabalhava, tivemos tão só contatos eventuais em função de trabalharmos no mesmo local.


O tempo passa, eu me caso, me mudo de um lado para o outro e, enfim, compro uma casa financiada em 360 meses pela CEF e finco pé.



A empresa atravessa um período de crise e as demissões são frequentes. Meu filho nasceu há poucos meses e todo dia sou forçado a controlar a apreensão de ver meu nome encabeçando a lista dos cabeças-cortadas. Um belo dia, ao sair de um pernoite no qual soube que mais três – bons – funcionários haviam sido ceifados, decido agir. Inscrevo-me em um concurso para Inspetor da Gloriosa Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.



Faço a prova objetiva, passo. Faço o exame psicotécnico no Rio de Janeiro; na saída do exame esbarro com o moço espinhento. Trocamos algumas palavras sobre o concurso, logicamente, e fica nisso.



Passo na porra toda mas não sou classificado nas vagas. Torno-me um excedente. Eu e mais uns mil e poucos candidatos. Fico decepcionado mas - fazer o quê - vida de concurseiro é isso. Os dias passam e fico sabendo que uma comissão foi formada dentre a galera que sobrou pra tentar nosso aproveitamento com base em uma lei estadual que prevê um efetivo de vinte e poucos mil policiais civis e a Gloriosa só contava com pouco mais de dez mil. Me animo: ainda resta um filete de esperança. Em contato com a tal comissão descubro que, além de mim, há mais dois em minha cidade na mesma situação de aprovado pero no classificado, um deles é o ex-estagiário.



Sondo e fico sabendo ainda mais: o cara mora a poucos metros da minha casa, somos praticamente vizinhos. A partir daí, estabelecemos um contato frequente por conta do interesse comum.



Os excedentes do concurso, representados pela comissão, alcançamos algumas vitórias, paulatinamente: alteração da validade do concurso, convocação para o curso na acadepol. Decido meter o pé do antigo mister, embora saiba que tal decisão é assaz temerária: nada é líquido nem tampouco certo.



Alugo um apartamento no Rio junto com outro candidato da minha cidade para fazermos o curso. Convidamos o franzino mas ele declina: quedar-se-á em casa de parentes, sai mais barato, a despeito da distância maior que teria de percorrer diariamente.
Fazemos o curso, as provas, passamos, tamos dentro. Sou lotado num canto, ele noutro. A vida corre, o tempo passa e chegam as notícias: o amigo tá fazendo um monte de coisa errada, também chamadas de “merda atrás de merda”. Repudio, refuto as notícias, taxando-as de maledicência: não, não existe a menor possibilidade de que aquele menino mocorongo, todo retraimento, esteja se dedicando a tais práticas reprováveis.



Tempos depois, mais notícia ruim: o cara foi preso. Caralho! Não pode ser! Mas, é.



Os meses passam e, certo dia, esbarro com o caboclo na pista.
E aí, beleza?
Tranquilo.
E aí, tá trabalhando onde?
Ainda tô de molho. Aqueles filhos da puta me foderam, não fiz porra nenhuma de errado!
É foda. Infelizmente todos estamos sujeitos a isso. (Penso: todos uma ova! Eu é que não me meto em furada! Antes endividado que demitido e preso!)
É.
Então fica assim. Vou indo nessa.
Valeu.
Valeu, brow. Fica com Jesus.



Muitos sóis sobem e descem e, com um deles a pino, recebo a notícia mais pior de ruim: o colega assassinou a esposa, crivou-a de projéteis, encheu-a de chumbo, enviou-a a contragosto e sem escalas para a terra dos pés juntos. Qual das vezes outras, desta feita com mais ênfase, dou vazão à minha incredulidade: “o Fulano?!?! Não, não posso acreditar nisso!!!” Mas era à vera. Após matar o cônjuge virago, tentara fugir, mas fora capturado, preso em flagrante por homicídio qualificado.



O tempo é a borracha da memória. Passam-se os anos, vou de uma delegacia para outra e paro na de minha cidade natal.



A noite é atípica: a delegacia, quase sempre com fila de espera, está vazia. Bato um papo descontraído com o colega do plantão – coisa que há tempos não fazemos. Vejo a luz de um giroflex que se aproxima. A viatura do SOE – o serviço de transporte de presos – para. “Lá vem preso pra depor amanhã.” – falo para o colega do plantão. Os agentes abrem a porta traseira, um único preso desembarca, com a característica camisa de malha branca. Vêm se aproximando e reconheço o ex-colega franzino, baixinho, rosto repleto de espinhas, retraído e que falava baixo. Outro preso, mais um preso, um preso como outro qualquer. Quando me vê, esboça um sorriso, estende a mão direita algemada à outra e diz: “André! E aí?”. Ao ouvir o nome pelo qual somente meus pais, irmãos, tios e primos me tratam, vindo de um preso do sistema, levo alguns segundos para estender a mão e apertar a dele, bate uma confusão na cachola de policial civil com quinze anos de profissão. Dirigimo-nos ao cárcere, o preso escoltado pelos agentes da SEAP, a Secretaria de Administração Penitenciária. Ele calça tênis. Não pode entrar com eles por conta dos cadarços (presos, quando querem se matar, usam até a própria camisa). Peço para tirá-los e calçar um par de chinelos que algum outro prisioneiro deixou para trás. Ele me olha com cara de “pô, André, fala sério!” mas nada diz e faz o que pedi. Entra na cela, bato a pesada porta de aço e tranco o cadeado.



Os agentes se vão e eu fico com meus pensamentos. Bate “um ruim”, um incômodo chato que só posso definir como tristeza. Estou triste por ver o antigo amigo que nem era tão amigo assim – nunca bebemos nem conversamos amenidades em um botequim qualquer juntos – naquela deprimente situação. É a última noite do plantão, noite que custa a passar.



Puta que pariu, cara, que merda é essa que você fez com a sua vida?



Pela manhã, ele pede um banho. Não quer encarar o Tribunal do Júri fedendo. Peço ao colega do plantão que atenda ao pedido. Não quero contato porque não quero vê-lo porque quando o vejo enxergo um monstro saído do lodo das minhas memórias, um ser humano disforme feito de várias caras, umas boas, outras ruins, cuja visão me faz mal. Sinto-me um pouco culpado por isso. Mas, foda-se. Quem fez merda não fui eu.



O plantão termina, graças a Deus. Volto pra casa e o cara vai pro fórum. Não sei a sentença nem quero saber. Quero beber minhas cervejas e fumar meus cigarros e ler meus livros e ver meus filmes e beijar e amar minha esposa. Aproveitar minha folga porque outro plantão vem aí e não demora a chegar.



Continuo achando que ganho mal pra fazer o que faço. E que não existe bicho mais esquisito e imprevisível que o ser humano.



Que merda.
Carlos Cruz