terça-feira, 20 de setembro de 2011

mundo perro - parte 3



Cheguei ao Savana's. À entrada, constatei que o segurança era novato. Boa noite. O Rubi não veio trabalhar hoje? Do alto de seus muitos centímetros, o brutamontes dardejou um olhar hostil. Rugiu: quem quer saber? saquei a carteira - bendita carteira - e quase a enfiei na cara do negão de paletó, gravata e calça negra de tergal; o distintivo, mesmo velho e opaco, refletiu tênue a luz vermelha que provinha do interior da boate. investigador Arquimedes. a primeira reação do corpulento foi nenhuma reação. a mesma expressão carrancuda, a mesma atitude animosa. sessenta segundos depois, uma frase seca: espera aqui, vou chamar. entrou no inferninho. Enquanto aguardava, saboreava os odores que o lugar emanava, uma mescla de fumaça de chiclete tutti fruti, perfume barato e nicotina. Os aromas combinados às luzes multicoloridas e ao blues em alto volume faziam daquele lugar o paraíso na terra. ao menos para mim e os outros sacripantas bêbados embevecidos podres com quem certamente esbarraria lá dentro. queria entrar logo e me inebriar, tornar-me fumaça cheirosa e fétida, carne líquida inflamável, mergulhar e dissolver no oceano de bucetas altruístas e dissolutas, metamorfosear-me no ser primordial, metafísica e antropofagicamente ideal. quando minha ansiedade beirava o ápice, Rubi apareceu, magro, baixo e feio. sempre que o via, pensava: como um sujeito desses pode ser leão-de-chácara? o pensamento invariavelmente vinha acompanhado da impressão de que ele estava mais magro, mais baixo e mais feio. grande arquimedes, o melhor investigador da polícia civil do estado do rio! grande rubykleysson, o maior puxa-saco da vagabundagem do estado do rio! ei, alto lá, doutor! posso ser tudo mas vagabundo não sou não! trabalho e ganho meu pão honestamente. parou de traficar? pô, doutor, isso são águas passadas... agora, sou um homem lavado e remido no sangue de jesus. ah, tá. então, também não come mais as putas. bom... ninguém é de ferro, né, doutor? e jesus perdoa o pecador arrependido. ele é misericordioso. o senhor vai entrar? tem carne nova na casa, uma loirinha de olhos azuis, peitão, uma bunda de deixar qualquer um doido. sei. e você, é claro, já pegou. não, ela diz que não mistura trabalho com prazer. aquele papo de onde se ganha o pão não se come a carne. é um saco... Arquimedes esboçou um meio-sorriso. entrou.

casa cheia, mas não lotada. dava para se esgueirar entre os fregueses sem esbarrões ou pisadas. "fregueses o caralho! cli-en-tes!", diria madame samanta, a santa. com seus quase setenta, ainda fazia milagres na alcova, "dá até bicicleta em cima do pau", diziam. aproximei-me do palco, onde uma menina - que dificilmente convenceria alguém de sua maioridade - requebrava-se sensual e desajeitadamente e fazia caras e bocas para os putos que fumavam, bebiam e conversavam em tom elevado. cambada de porcos! poucos assistiam ao espetáculo. somei-me a eles. muddy waters, em um tom pontual e flácido, cantava "mannish boy" especialmente para a menina, parecia saber que aquele era o momento dela, só dela. aquela era uma das razões porque frequentava o savana's. o blues. a maioria das casas do gênero tocava apenas música eletrônica, aquele bate-estaca infernal que fazia minha cabeça doer. se não bastasse, ainda usavam aquelas luzes estroboscópicas que me deixavam zonzo. no savana's era diferente. boa música em volume razoável, luzes parcimoniosas. mirei novamente a moça, podia jurar que sua performance havia melhorado. "performance", odeio esta palavra. de repente, ela olhou para mim e sorriu. não retribuí o sorriso. sentia-me triste aquela noite, acho que mais uma vez os problemas fétidos do mundo invadiam sorrateiramente meu cérebro e se espalhavam pelo corpo todo, qual um câncer, qual odor de gente morta quando começa a putrefação. não era a primeira vez que isso acontecia. por mais que me esforçasse para mantê-los à distância e na companhia de seus donos, eles teimavam em me assaltar, me barbarizar, me emporcalhar com a sua pestilência fedorenta e voraz. você está melancólico hoje, santiago dizia. melancólico o cacete! vai se foder!, eu retrucava. a menina continuava sua ofídica dança, evoluía, dançava melhor com certeza. senti um cheiro forte, de um perfume que eu conhecia bem, francês. impôs-se sobre os outros odores não menos densos. sílvia! virei-me, dois passos e foi-se o metro que nos separava. engalfinhamo-nos naquela volúpia sôfrega e tenaz típica dos amantes que amam apenas com o corpo. beijei aquela boca vermelha como se fosse a última boca feminina na face do globo, suguei sua língua com ardor, sem pensar nos paus que ela havia acariciado naquela jornada de trabalho e em outras, centenas, milhares talvez. sabia beijar, a sílvia. assim como sabia chupar um pau. e foder. fodia muito. acho que o sucesso de sílvia se devia a um princípio simples que a aproximava de outros profissionais bem-sucedidos: ela gostava do que fazia. gozava, com quase todos os clientes, segundo me confidenciou numa dessas noites, entre uma trepada fenomenal e outra nem tanto. mas beijo na boca não, me disse certa vez, beijo na boca é só com você, meu pm gostoso. não sou pm, porra! quantas vezes tenho que repetir isso? ôôô... ficou bravinho? adoro quando você fica bravo... vem meter seu cassetete em mim, vem, meu policial malvado... esse diálogo invariavelmente terminava em uma daquelas camas sujas lá nos fundos da boate. mas nessa noite foi diferente. sílvia estava reservada para um gringo endinheirado, um magnata da internet, ela disse. fiquei puto. quando vi o sujeito, fiquei mais puto ainda. branco pálido, cara cheia de espinhas, uns vinte e cinco anos de idade, tênis nike colorido cheio de molas, calça jeans e camisa do chicago bulls. então aquilo era o tal magnata? ah, vai se foder! arrastada pelo braço, antes de sumir atrás da cortina vermelha, a puta ainda me jogou um beijo. minha melancolia voltou com toda a força. segui até o bar e pedi um uísque duplo. virei. pedi mais um. virei. outro. saí da boate, completamente e estupidamente bêbado.