quinta-feira, 14 de junho de 2007

Fogo-fátuo




O atrito contra o abrasivo da caixa incandesceu o fósforo. Por alguns segundos, ficou observando a chama consumir o palito. Gostava de admirar o fogo, que mal havia nisso? Desde os primórdios, o fogo representava um elemento essencial à sobrevivência humana, lera em algum lugar. Então, por que cargas d'água era tão discriminado? Resignado, suportara, durante anos, as repreensões, as surras, as punições, mas aquilo era demais. Quem esse filho da puta pensava que era para xingá-lo daquele jeito? Piromaníaco era o pai dele. Não sabia o significado da palavra mas, certamente, devia ser algo muito ruim. A chama do palito estava quase se apagando. Largou. O combustível fez o fogo alastrar-se rapidamente. Sentou-se e contemplou, como das outras vezes. O odor o transportou de volta à infância. Lembrou-se do churrasco preparado por seu pai aos domingos, música, festa, a família toda reunida. A raiva deu lugar a outro sentimento, felicidade, talvez.


A secretária chegou um pouco mais cedo ao trabalho. Passou em frente à entrada do restaurante que funcionava no térreo, no momento em que um garçom conhecido saía. Cumprimentaram-se. Subiu pelas escadas até o segundo andar. Ainda no corredor, sentiu o cheiro. "Huuum" - pensou - "hoje vai ter churrasco no almoço." Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta, entrou no consultório...


O detetive de plantão, com ar de enfado, golpeava o teclado da velha máquina de escrever, enquanto ouvia o gaguejante zelador, o qual relatava como encontrara, sobre o divã, o cadáver causticado e ainda fumegante do psiquiatra. "Quanto à secretária" - dizia - "parecia um personagem de um filme de terror, com todos aqueles palitos espetados no rosto e aquela vela acesa enfiada no ânus. Que coisa sinistra." O policial interrompeu a digitação para indagar ao escrivão, que trabalhava na mesa ao lado, qual era o prato do dia na pensão em frente à DP. "Churrasco" - respondeu o escrivão.

Carlos Cruz - 14/06/2007