quarta-feira, 16 de abril de 2008

Agente Laranja




Disfarçado de gari da Conlurb encontrou, na lata de lixo do descuidado deputado, as provas das fraudes nas licitações. Lixo recolhido, parlamentar indiciado, faxina concluída, partiu para a casa do vereador - mais um - suspeito de desvio de verbas públicas. Por vezes, sobrevinha-lhe o desânimo. Por mais que limpasse, parecia que a sujeira só fazia aumentar.

Carlos Cruz - 12/04/2008

O Fim da Picada



Junkie irrecuperável, provou toda sorte de drogas. Cheirou, fumou, ingeriu, injetou, introduziu no ânus. Certo dia, ouviu alguém dizer que cheirar cu de cobra dava onda. Não deu onda, deu azar. Escolheu justo uma coral verdadeira dotada de enormes peçonhas. Picada. Dor. Convulsões. Parada Cardíaca. Morte. Fim.

Carlos Cruz - 12/04/2008

A Origem da Sabedoria



Experimentarei o caos telúrico
sepultado nas entranhas da terra
uterina
de odores, livores e calores
carnívoros
ígneos
rubro-brilhantes
lumino-trevosos
fluidos vaginais
causticantemente interessantes
cuspe da vulva falante
profética
homérica
espaçosamente hermética
vaticina o fim
da existência
do homo sapiens
sapientíssimo
mediano
puritano
e burro
como a porta
do mercado
das pulgas humanas
racionais
empíricas
behavioristas
jactanciosas
pedantes e esquisitas

O mundo é lindo
A vida é bela
O amor é bom
O homem é feliz

Sorria.

Carlos Cruz - 09/04/2008

sexta-feira, 11 de abril de 2008

O Massacre do Ferro Elétrico ou A Fábula da Consolação




Cena I: O Grito
"AAAAAAAaaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!!! Desgraçada!!!! Filha da puuuuutaaaaa!!!"

Cena II: Os Cadáveres
Elas não tiveram a menor chance, nenhuma escapou. Todas queimadas, todas perdidas, todas irrecuperáveis. Todas. Algumas tinham manchas; outras, buracos. Sempre o mesmo desenho, nas costas ou na frente, nas costas e na frente. Retorcidas de um jeito macabro, pareciam rostos em agonia. Rodolfo não queria acreditar no que seus olhos viam. Gritava, xingava, chorava. Suas adoradas camisas de seda haviam virado trapos.

Cena III: A Motivação
O amontoado de camisas ocultava o elemento fundamental ao entendimento da atitude tresloucada da criminosa: a bela e vermelha mancha de batom em forma de boca no colarinho da camisa branca.

Cena IV: O Desequilíbrio
"Isso não é justo. Deixo-a à vontade para sair com quem quiser, dar para quem quiser. E eu? Não posso sequer dar uns amassos na secretária? Sacanagem isso. Sacanagem da grossa."

Cena V: O Desejo
Vingança. Retaliação. "Vendetta". Tais palavras alternavam-se no cérebro de Rodolfo. Tinha de dar o troco à altura, degustar o tal prato frio. Destruir aquilo que ela mais prezava. Mas o quê? Refletiu, pensou, pensou, refletiu... Súbito, os olhos brilharam, a boca esboçou um sorriso malévolo. "Já sei." - falou, entredentes, antes de dirigir-se ao quarto de ferramentas.

Cena VI: O Morticínio
Eles bem que tentaram escapar. Pularam para cá, pularam para lá. Um grandão quis esconder-se no ânus de Beethoven, que ganiu, mordeu e destroçou com os dentes. Talvez alguns até conseguissem fugir se acaso não fossem desprovidos de pernas. Ademais, Rodolfo estava furioso, os olhos injetados, a cara vermelha, não teria compaixão. E não teve. Martelo em punho, perseguiu e capturou um a um, depositando-os na gaiola do canário belga, o qual, espertamente, preferiu não ficar para ver o desfecho: aproveitando-se da confusão, tratou de bater as asas e voar para bem longe. Após encarcerar o último fugitivo, teve início a sessão de tortura e morte. Rodolfo prendeu o primeiro na morsa, ergueu o martelo e... cravou-lhe o prego no alto da cabeça, de onde escorreu um filete de látex branco, formando uma pequena poça leitosa numa das mandíbulas da morsa. Depois veio outro prego. E mais outro. Da gaiola, os outros apenas observavam, apavorados, o companheiro transformar-se em um autêntico Pinhead, aquele sinistro personagem do filme Hellraiser. Alguns choravam, outros gritavam, outros mais rezavam, à espera de um milagre que não aconteceu. Tiveram todos o mesmo destino do primeiro.

Cena VII: O Conflito
- AAAAAAAaaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!!! Desgraçado!!!! Filho da puuuuutaaaaa!!! - gritou Sabrina ao deparar-se, estupefacta, com a pilha macabra cuidadosamente montada ao lado da grande cama de mogno.
- Olho por olho, dente por dente, querida. Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Destruiu minhas camisas de seda importadas, acabei com sua coleção de consolos.
- Seu corno! Traidor! Você mereceu!
- Mereci o cacete! Só porque dei uns pegas na secretária? Porra, você já deu pra um monte de caras!
- Mas o que foi que combinamos? Eu podia transar com quem eu quisesse, você não!
- Tá. Mas não precisava estragar minhas camisas. Você sabia o quanto eu gostava delas.
- E você sabia que eu sou ciumenta... Porra... Precisava sacrificar até os vibradores?...

Cena VIII: A Reconciliação
- Amor... Você me perdoa? - indaga Rodolfo, olhos mareados.
- Claro... E você, também me perdoa? - soluça Sabrina.
- Claro que sim. Eu te amo.
- Também te amo.
Lágrimas. Abraços. Beijos. Sexo.

Cena IX: A Felicidade
Manhã do dia seguinte. Shopping e Sex Shopping. Rodolfo comprou logo duas dúzias de novas e reluzentes camisas de seda, importadas e de diversas cores, enquanto Sabrina, radiante, pagava com cartão suas novas aquisições: trinta consolos de cores e tamanhos diferentes, duros, vibrantes e até mesmo alguns falantes. A vida do casal normal voltou ao normal no mundo normal das pessoas normais.

Carlos Cruz - 12/04/2008

quinta-feira, 10 de abril de 2008

O Processo ou A Multiplicação das Mães



Reinaldo não sabia lidar com perdas. Quase enlouqueceu de vez no dia em que sua mãe se foi. O apagão provocado pela manutenção deficiente nas linhas de distribuição de energia elétrica fez o aparelho que a mantinha viva parar de funcionar. Ao fim do processo, recebeu um milhão de reais de indenização. Pôs um anúncio nos classificados de um jornal de grande circulação: "Contrata-se mulher branca, baixa, gorda, com idade entre cinqüenta e cinco e sessenta anos, que use óculos e saiba preparar bolinhos de chuva, para exercer a função de mãe. Paga-se bem." A fila de idosas que se formou em frente à sua casa, no dia seguinte, de tão longa, dava duas voltas no quarteirão. Contratou logo cinco mães. Alguns meses depois, uma delas veio a falecer. Contratou outras cinco para ocuparem seu lugar. Após dois anos, já contava com dezessete mães, todas muito parecidas, carinhosas, sorridentes e bem remuneradas.
Os anos se passaram, anos de felicidade e muito amor maternal. Numa chuvosa manhã, lá pelas dez horas, uma das velhinhas achou estranho o fato de Reinaldo, que acordava cedo, ainda não ter saído do quarto. Interrompeu o preparo dos bolinhos de chuva e foi despertá-lo. Ele não acordou, malgrado os sacolejos frenéticos da anciã. Estava morto. Estampada no rosto, uma expressão de serena felicidade. Morrera sorrindo, feliz, rodeado por suas adoráveis mães. O funeral entrou para a história da pequena e bucólica cidade, dada a quantidade e homogeneidade das integrantes do séquito que acompanhava o caixão: exatas cento e oitenta e uma senhoras, todas idosas, brancas, de baixa estatura, gordas e usando óculos. Quando o esquife desceu, em vez de cal, lançaram bolinhos de chuva na cova, o cheiro agradável espalhando-se pelo cemitério. Parte dos cidadãos que acompanhavam a cerimônia fúnebre, ao final, seguiram para suas casas, beijaram e abraçaram suas genetrizes. Aqueles cujas mães haviam partido para o Além ou para outras partes do Globo, apenas choraram. Choveu durante todo aquele dia e nas duas semanas que se seguiram. Ninguém soube explicar mas, após o óbito de Reinaldo, o ar da cidade impregnou-se do odor inconfundível de bolinho de chuva, trazendo à memória dos visitantes que por ela passavam, vivências da infância, reminiscências do passado, imagens saborosamente nostálgicas de suas avós e de suas mães, preparando os tais bolinhos, em dias chuvosos.

Carlos Cruz - 11/07/2007