domingo, 18 de dezembro de 2011

mundo perro - final





dolorido, desperto. deparo um mar de branco hospitalar. sinto-me um náufrago em minha solidão. a felicidade debandou ou viajou em férias ao camboja. quem sabe virou cinzas, causticada pelos pássaros de fogo. as lembranças vêm em pequenas doses, ao sabor do latejar do meu ombro. santiago aparece. segundo ele, surtei de alto a baixo, de frente e de costas, por dentro e por fora. em suma: endoideci geral e de vez naquela vez. serei avaliado e muitíssimo provavelmente - creio ainda não ter referido a simpatia de santiago pelos superlativos absolutos sintéticos - afastado pela psiquiatria; readaptado, talvez. felizmente - disse-me ele - não matou nem feriu ninguém. o computador do plantão, porém - coitado! - já era. virou uma peneira. trinta e um tiros é tiro pra caralho! você tava mesmo com raiva do pobre. volvi a cabeça e de soslaio, sorri esboçado e satisfeito como o jogador que vence a partida. missão cumprida. eu destruíra a caixa de pandora e salvara o mundo. glória a hesíodo! e a mim, claro. de preferência, acompanhada de uma medalha e uma promoção por bravura. afinal, a escassez de heróis demanda lauréis aos intimoratos necessitados de um cascalho a mais pra gastar com pornografias culturais e vícios legais. porque sou - convém jamais esquecer, sequer por um (seria ótimo?) átimo: um homem da Lei! VAGABUNDOS DE TODO O ESTADO, DO TIPO CORRIQUEIRO OU NEO-CONVERTIDOS CAOZEIROS, TREMEI! investigador arquimedes, o martelo da justiça, o flagelo dos párias, ainda está no páreo! a trovoada seguida do matraquear do granizo sobre o telhado galvanizado deu o tom maldito propício ao fechamento da diatribe. o céu desabava sobre as cacholas dos humanos, contribuintes e não. uma exaltação brotada na planta dos pés - pra não dizer frenesi, sempre achei um termo meio gay - escalou, deliciosamente implacável - nada adiantou, ficou gay do mesmo jeito - meu corpo e descambou e explodiu no cérebro. olhei a cidade enevoada e fluida e tive a certeza da inutilidade da minha existência. por isso e somente por isso, pela primeira vez, senti-me parte do todo social, mais idiota do que nunca. tive ímpetos de gargalhar.


e gargalhei.



Carlos Cruz - 18/12/2011

mundo perro - parte 6




giroflex vermelhos girando e girando e girando. sem parar. vermelho. sangue. vernelho-sangue. um sujeito negro chafurdando no seu próprio sangue no piso amarelo. pms com testas franzidas, fardas cinzas engomadas, olhos injetados. sangue. olhos de sangue. sangue nos olhos. ao balcão, uma mulata chora. olhos entalhados no fundo de olheiras negras chovem em conta-gotas. lágrimas ininterruptas, fartas. sangue. lágrimas de sangue. farto, de novo novamente mais uma vez. estou farto e trêmulo. insano, enfim, estremeço. atirar! quero muito. necessito atirar! e atiro. descarrego minha pistola. recarrego, atiro de novo e de novo e de novo. alvoroço. pandemônio. pessoas ao chão. pms e civis e santiago se entreolhando, atônitos. em meio ao caos, transtornadamente tresloucado, sinto o calor no ombro somente quando a munição acaba. fumaça, neblina e cheiro de pólvora. o fluido vermelho que jorra, a cântaros, torna-se uma mancha crescente no piso amarelo. concomitante, choro e rio. babo também, acho. ora penso estar louco e sou tomado por um sentimento que acredito ser a alardeada, almejada felicidade; ora sobrevêm a decepção a partir da constatação de que ainda concateno pensamentos. dizem que os loucos não pensam. penso, logo, raciocino, logo, ajo em conformidade com a razão. quem disse isso? há estudos científicos comprobatórios de tal assertiva? ou serão meras quimeras dos dementes? não tenho respostas nem as desejo, quero apenas prolongar essa sensação de purificação libertária, esse júbilo remissivo que me enche de paz e me dá ganas de morder os dedos do pé e cantar as músicas do Benito di Paula. justo nesse instante - por que tão fugaz? - vejo a luz. vá para a luz, caroline! feliz, sim!, imirjo na lagoa rubra iluminada por pássaros de fogo emissários do hades. apago a luz e acendo um sorriso sem dentes no canto da boca. desapegado e telúrico, etéreo e com pés plúmbeos, não ascendo. a vida, afinal, não é assim tão ruim.


mundo perro - parte 5




paradoxal a ponto de reluzir e ainda assim - por muito pouco - quase não existir, modorrenta, turva, frenética, trágica, bela (como deve ser, a despeito dos implantes e peitos de jabulanis e ferraris e perfumes importados que fazem espirrar), a deambulação emitiu seu derradeiro estertor, descambou onde deveria - quiçá - o inevitável dever desgraçado e a monocórdia ladainha incessante: só pode nunca poder nada. se foder-se! de verde, de amarelo, de azul, de branco. de preto & branco. a vascaína tá dobrando a esquina. vaza, vagabundo! desinfle até virar galho de goiabeira. vou e volto sem sair do lugar. será a tal metamorfose? ansiada, dentre outros malucos, por literatos?, musicistas?, vates?. ah! vá te danar! ou vai se! pra não eriçar tão-só um gramático braço. não dá pra ser metamorfose, tampouco ambulante. os GM zunem cassetetes na cacunda e ninguém tá aí de plantão louco pra sofrer. só os S&M de araque e os leitores do caderno B. se uso avanço, ninfas avançam; se axe, exalo axiomas. piadinhas infames. adoro. e tudo isso somente pra dizer que cheguei na DP. comichão nos dedos. vontade de atirar da porra! tem nome isso, certamente tem. síndrome do desejo irrefreável e irresistível de atirar com armas de fogo (há atiradeiras ou bodoques no Sítio do Pica Pau Amarelo, nunca é demais relembrar, mesmo que os garotos informáticos e x-bóxticos desconheçam). deve existir. outra psicossomose bacana que consta ou deveria constar do vade mecum da psiquiatria: dependência de dupla penetração na delegacia de polícia. a merda é que só mulher feia e viado iam sofrer dessa porcaria. bosta!

gravura: Butcher, Baker etc by Dominic Marco

sábado, 3 de dezembro de 2011

mundo perro - parte 4



a noite estava ainda mais fria. o asfalto úmido indicava chuva recente. se acreditasse que possuía alma, diria que ela estava tão fria como o clima noturno. minha cabeça acompanhava o fluxo de meus pensamentos que giravam alucinados por tempos, pensadores, bebedeiras e bucetas distantes ou nem tanto. como sempre acontecia quando bebia, tinha vontade de atirar, mas o homem-da-lei sofreava o desejo. súbito, surgiu um motorista apressado na via, bastante comum a essas horas avançadas, decerto movido e motivado pelo álcool e/ou outros entorpecentes lícitos e ilícitos. quando emparelhou comigo, reles transeunte ébrio, passou propositalmente sobre uma poça. tomei um banho de água suja e gélida. apesar da obscuridade, pude ver o sorriso do sem-mãe. FILHO DA PUTA DESGRAÇADO! saquei a arma, mirei a traseira do auto, um Jaguar XKR conversível e atirei. para o alto. por pouco a razão não perde a peleja para o coquetel de raiva e vodka. por um triz. imaginei as manchetes no dia seguinte, primeira página do meia hora e do dia: POLICIAL BÊBADO ATIRA E MATA MOTORISTA. O investigador da Polícia Civil Arquimedes Sampaio, após sair da boate Savana's, conhecido inferninho de Copacabana, ponto de encontro de prostitutas, travestis e criminosos, assassinou covardemente o estudante Felipe Stonnenberger de Alvarenga na madrugada de ontem... não. definitivamente não. não vou dar mole pra esses putos. que crucifiquem outros pra vender seus tablóides de merda. parte do porre havia passado. encharcado, tiritava. novamente pensei na minha condição miserável. sim, era isso que eu era, um miserável, um merda. a melancolia sobreveio com força total, a boca medonha cheia de dentes afiados e alaranjados devorando-me pela cabeça. senti seu hálito nauseabundo, sua saliva gosmenta melando meus cabelos e meu ânimo de viver. um tiro na cabeça, morte rápida e indolor. indolor? será? ninguém tinha voltado da sepultura para lhe contar se realmente aquele átimo derradeiro e crucial doía ou não. acho que deve ser uma dor lancinante, a maior dor que existe no universo. depois, acabou.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

micropoeta




o poeta é um prostituto
finge quase sempre


mente


de quando em quando,
goza


sente,
sempre


o poeta é um puto.

Carlos Cruz - 20/10/2011

terça-feira, 20 de setembro de 2011

mundo perro - parte 3



Cheguei ao Savana's. À entrada, constatei que o segurança era novato. Boa noite. O Rubi não veio trabalhar hoje? Do alto de seus muitos centímetros, o brutamontes dardejou um olhar hostil. Rugiu: quem quer saber? saquei a carteira - bendita carteira - e quase a enfiei na cara do negão de paletó, gravata e calça negra de tergal; o distintivo, mesmo velho e opaco, refletiu tênue a luz vermelha que provinha do interior da boate. investigador Arquimedes. a primeira reação do corpulento foi nenhuma reação. a mesma expressão carrancuda, a mesma atitude animosa. sessenta segundos depois, uma frase seca: espera aqui, vou chamar. entrou no inferninho. Enquanto aguardava, saboreava os odores que o lugar emanava, uma mescla de fumaça de chiclete tutti fruti, perfume barato e nicotina. Os aromas combinados às luzes multicoloridas e ao blues em alto volume faziam daquele lugar o paraíso na terra. ao menos para mim e os outros sacripantas bêbados embevecidos podres com quem certamente esbarraria lá dentro. queria entrar logo e me inebriar, tornar-me fumaça cheirosa e fétida, carne líquida inflamável, mergulhar e dissolver no oceano de bucetas altruístas e dissolutas, metamorfosear-me no ser primordial, metafísica e antropofagicamente ideal. quando minha ansiedade beirava o ápice, Rubi apareceu, magro, baixo e feio. sempre que o via, pensava: como um sujeito desses pode ser leão-de-chácara? o pensamento invariavelmente vinha acompanhado da impressão de que ele estava mais magro, mais baixo e mais feio. grande arquimedes, o melhor investigador da polícia civil do estado do rio! grande rubykleysson, o maior puxa-saco da vagabundagem do estado do rio! ei, alto lá, doutor! posso ser tudo mas vagabundo não sou não! trabalho e ganho meu pão honestamente. parou de traficar? pô, doutor, isso são águas passadas... agora, sou um homem lavado e remido no sangue de jesus. ah, tá. então, também não come mais as putas. bom... ninguém é de ferro, né, doutor? e jesus perdoa o pecador arrependido. ele é misericordioso. o senhor vai entrar? tem carne nova na casa, uma loirinha de olhos azuis, peitão, uma bunda de deixar qualquer um doido. sei. e você, é claro, já pegou. não, ela diz que não mistura trabalho com prazer. aquele papo de onde se ganha o pão não se come a carne. é um saco... Arquimedes esboçou um meio-sorriso. entrou.

casa cheia, mas não lotada. dava para se esgueirar entre os fregueses sem esbarrões ou pisadas. "fregueses o caralho! cli-en-tes!", diria madame samanta, a santa. com seus quase setenta, ainda fazia milagres na alcova, "dá até bicicleta em cima do pau", diziam. aproximei-me do palco, onde uma menina - que dificilmente convenceria alguém de sua maioridade - requebrava-se sensual e desajeitadamente e fazia caras e bocas para os putos que fumavam, bebiam e conversavam em tom elevado. cambada de porcos! poucos assistiam ao espetáculo. somei-me a eles. muddy waters, em um tom pontual e flácido, cantava "mannish boy" especialmente para a menina, parecia saber que aquele era o momento dela, só dela. aquela era uma das razões porque frequentava o savana's. o blues. a maioria das casas do gênero tocava apenas música eletrônica, aquele bate-estaca infernal que fazia minha cabeça doer. se não bastasse, ainda usavam aquelas luzes estroboscópicas que me deixavam zonzo. no savana's era diferente. boa música em volume razoável, luzes parcimoniosas. mirei novamente a moça, podia jurar que sua performance havia melhorado. "performance", odeio esta palavra. de repente, ela olhou para mim e sorriu. não retribuí o sorriso. sentia-me triste aquela noite, acho que mais uma vez os problemas fétidos do mundo invadiam sorrateiramente meu cérebro e se espalhavam pelo corpo todo, qual um câncer, qual odor de gente morta quando começa a putrefação. não era a primeira vez que isso acontecia. por mais que me esforçasse para mantê-los à distância e na companhia de seus donos, eles teimavam em me assaltar, me barbarizar, me emporcalhar com a sua pestilência fedorenta e voraz. você está melancólico hoje, santiago dizia. melancólico o cacete! vai se foder!, eu retrucava. a menina continuava sua ofídica dança, evoluía, dançava melhor com certeza. senti um cheiro forte, de um perfume que eu conhecia bem, francês. impôs-se sobre os outros odores não menos densos. sílvia! virei-me, dois passos e foi-se o metro que nos separava. engalfinhamo-nos naquela volúpia sôfrega e tenaz típica dos amantes que amam apenas com o corpo. beijei aquela boca vermelha como se fosse a última boca feminina na face do globo, suguei sua língua com ardor, sem pensar nos paus que ela havia acariciado naquela jornada de trabalho e em outras, centenas, milhares talvez. sabia beijar, a sílvia. assim como sabia chupar um pau. e foder. fodia muito. acho que o sucesso de sílvia se devia a um princípio simples que a aproximava de outros profissionais bem-sucedidos: ela gostava do que fazia. gozava, com quase todos os clientes, segundo me confidenciou numa dessas noites, entre uma trepada fenomenal e outra nem tanto. mas beijo na boca não, me disse certa vez, beijo na boca é só com você, meu pm gostoso. não sou pm, porra! quantas vezes tenho que repetir isso? ôôô... ficou bravinho? adoro quando você fica bravo... vem meter seu cassetete em mim, vem, meu policial malvado... esse diálogo invariavelmente terminava em uma daquelas camas sujas lá nos fundos da boate. mas nessa noite foi diferente. sílvia estava reservada para um gringo endinheirado, um magnata da internet, ela disse. fiquei puto. quando vi o sujeito, fiquei mais puto ainda. branco pálido, cara cheia de espinhas, uns vinte e cinco anos de idade, tênis nike colorido cheio de molas, calça jeans e camisa do chicago bulls. então aquilo era o tal magnata? ah, vai se foder! arrastada pelo braço, antes de sumir atrás da cortina vermelha, a puta ainda me jogou um beijo. minha melancolia voltou com toda a força. segui até o bar e pedi um uísque duplo. virei. pedi mais um. virei. outro. saí da boate, completamente e estupidamente bêbado.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

mundo perro - parte 2




delegacia cheia. à porta, fila. burburinho que ocasionalmente virava falatório que virava gritaria. era hora de chamar o investigador santiago. mãe angolana e pai sueco, santiago era um misto de hércules com zumbi dos palmares, um mulato de dois metros e dez, forte como um estivador, de olhos claros e cara de bebezão. sim, aquele homenzarrão (ai, meu deus! que bofe é esse? remeti (ã?) ao amigo do salão. inevitável.) tinha traços delicados, bochechudo como um bebê de oito meses. daí a alcunha babyssauro, pronunciada entredentes, na delegacia. contudo, a impostura que faltava ao rosto sobejava no tamanho. santiago apareceu no andar de baixo. inopinado. nem precisava dizer nada, bastava chegar e ser visto. mas, a pseudotruculência era mais que uma ferramenta de trabalho, era uma necessidade pessoal, um recurso - eficaz, é verdade - para tentar rebater a brandura transmitida pela cara de neném. e ele disse, disse não, esbravejou (tá legal, sou besta, pronto): VAMOS PARAR COM A PORRA DESSA ALGAZARRA AQUI NA DELEGACIA! ONDE VOCÊS PENSAM QUE ESTÃO, CAMBADA DE FILHOS DA PUTA, NA MERDA DA CARALHA DA FODIDA DA CASA DE VOCÊS? PORRA! O PORRA! sempre arrematava o esculacho verbal, uma espécie de fechamento triunfal, "chave de ouro", diria professor diocleciano, do curso de oratória. O fato é que o esporro funcionou, mais uma vez. infalível, indefectível, batata. Atravessei a turba estática e com grandes olhos e quebrei o silêncio sepulcral: Santiago, segura aí. Vou comer alguma coisa. tá. mas vê se volta hoje. Vou tentar.

A noite estava fria, escura e malcheirosa. Uma brisazinha gelada e incômoda com odor de comida podre e urina esgueirava-se pelas frestas de meu paletó vagabundo comprado na loja do turco. Turco filho da puta! Vendia merda pelo preço de merda. Pensando bem, era justo. Pensando bem, o fodido era eu. Mamãe sempre dizia: estuda filho, estuda pra virar doutor e ganhar bem. Não. Não segui o conselho de mamãe. Virei polícia. Horas e horas perdidas com a cara enfiada em apostilas, livros, monitor do computador. A prova massacrante, a tonteira no final, o tombo-semi-desmaio. Um quase infarto no teste físico. Um quase surto no psicotécnico. Pra quê? Pra ganhar um salário de fome, ser taxado de corrupto e truculento pelos putos que jurei defender, sacrificar a própria vida se preciso for. Pensando bem, filho da puta era o sistema, o estado, o governo. Pensando melhor (e para encerrar a costumeira diatribe muda), o filho da puta era eu.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

mundo perro - parte 1





"PERDEU, PLAYBOY!" "SE FUDEU, OTÁRIO!" "VAI TOMAR NO OLHO DO SEU CU, FILHO DA PUTA BABACA!" "VOU ACABAR COM A SUA RAÇA, SEU MERDA!"
Caixa alta, entre aspas. Assim me ensinaram na Academia de Polícia. Após o verbo e os dois pontos. A maioria dos colegas escrevia: ...então, João das Couves (policês acadêmico) disse: ou falou: ou gritou: Eu não. Preferia alternar outros verbos. Vociferar, esbravejar, bradar. Para variar, diria. Mas era mais para me exibir mesmo.

férias... férias. FÉRIAS! EU PRECISO TIRAR FÉRIAS! NÃO AGUENTO MAIS, CARALHO!

homicídios. latrocínios. sequestros. extorsões. extorsões mediante sequestros. roubos. furtos. lesões corporais. brigas. conflitos. pugnas. equimoses violáceas. lacerações. porradas. porradas. mais porradas. pow! blam! como nos gibis do frank miller. estava no limite. no limite. lembro do programa de televisão. precursor do big brother. dois programas idiotas. o segundo bem mais. babacas ávidos pela fama-fácil-sem-fazer-força expunham o que tinham de melhor: rostinhos bonitos e corpinhos sarados. caras, bocas e argumentos vazios para ludibriar os milhões de telespectros brasileños. ficaria george orwell satisfeito se vislumbrasse em que descambaria sua totalitária sociedade, sua personagem mão-de-ferro invisível que tudo via, sabia, controlava e reprimia? difícil saber. talvez almejasse a materialização da personagem, para botar ordem na casa, reprimir a súcia acéfala cheia de dentes e poses. apesar de que, e não se deve desconsiderar, há autores que dizem preferir as saudações pomposas e afetadas da crítica ao consumo desenfreado da populaça. balela! toda bexiga quer virar balão. e ganhar uma prata, pois prata é sinônimo de diversão em excesso e excessos despertam inspiração.

"conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". assim escreveu zaratustra, o discípulo. não. foi outro. barbudo. outro barbudo. que seguia aquele que alguns místicos asseguram ser zoroastro reencarnado. depois assassinado e ressuscitado. é a verdade. porque está nas escrituras sagradas. sagradas? todo escrito é sagrado. menos o diário oficial e a bula papal. o quê você disse? sei que vão cair de pau. afinal, escreveu, não leu, pau comeu! mas voltemos à verdade. a verdade é que só existe uma única verdade, ao menos para mim naquela noite fria: eu estava de - sa - co - che - i - o! por que e pra que tamanha mediocridade? beber é bom. dançar também. bater papo furado idem. foder, ah! gozei! nem vou mencionar a leitura de bons livros ou a audição de algum blues - qualquer um - ou até mesmo música erudita, pois isso é prazer para bestas empoladas como eu. por que os filhos da puta tinham sempre, invariavelmente, que se engalfinhar, dar socos, morder, enfiar facas, dar tiros nos seus semelhantes? seria um insight? uma consciência súbita e avassaladora de sua torpe condição refletida no outro? cadê minha psicóloga predileta quando preciso dela?

quinta-feira, 28 de abril de 2011

te julho





inóspito
te vi deserto
exilada
de si


cético
te vi axioma
salpicada
de sins


cáustico
te vi inverno
enevoada
de giz


lúbrico
te vi ninfa
lambuzada
de gim


esquálido
te vi árvore
desfolhada
de mim


se seca
se certa
se fria
se louca
se feia


se julho


te julho
te juro
te furo
te curo
te curro


te amo


Carlos Cruz - 26/04/11
*Gravura: Otra Mirada, de Modesto Trigo.

domingo, 24 de abril de 2011

As Bodas de Fígado




Casou-se moço, no auge de seu vigor produtivo: viçoso, trigueiro, reluzente, belo. Celebração natural de um amor brotado à primeira mirada, os folguedos vararam madrugadas e dias, de sol, fogo, chuva, mormaço. Malgrado protestos, sem cocas, crushs ou tubaínas afins, barraram-se os crentes à porta. Assevera a História Oral que o bagulho foi frenético, bombou. Pena o festivo começo não ter escapado à sanha tradicional dos matrimônios felizes. Amante fogosa, insaciável, ela reclamava elevadas e diuturnas performances e potências do fatigado cônjuge que, herculeamente, desdobrava tripas para satisfazer à amada. Debalde. Tamanha azáfama cotidiana fê-lo, paulatinamente, murcho, verde, opaco, feio de se ver. Apaixonado, chupado pelo amor que devora, consumiu-se até à morte; feliz. Doña Calibrina, a viúva, dizem, à boca pequena, logo anunciou núpcias novas, desta feita, múltiplas. Dada a profusão de pretendentes, decidiu-se por todos. Embevecidos, festejam os excessos da esposa volúvel. De quando em vez, tomba um. Outros poucos convertem-se à seita das vogais iguais. Porém, muitos outros vêm e juntam-se à bacanal. Sempre sorrindo, Doña Calibrina dança. E queima. E roda. Roda. Roda. Roda.


Carlos Cruz - 20/04/2011

* Pintura de Serhiy Reznichenko.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Da Volatilidade da Alma



Teria me espatifado. Elegante, escarlate e estrondosamente. Quem disse que não pode existir elegância e até mesmo sofisticação na morte? E solenidade, é claro. Porque a morte é sempre silenciosa e esse silêncio, até prova contrária, é solene. Como o roxo que forra os esquifes, solenes mas nada elegantes. Os gases, os odores pútridos vêm depois, junto com o esquecimento ou, quem sabe, alguns segundos de atenção virtual, imaginária ou até mesmo real, caso tenha aquela coisa que denominam talento. Sorte, não. A sorte não acompanha o talento, dispõe-se de um ou de outro, qual o amor e o jogo.
Teria me espatifado. Não fosse aquele confortável sofá. Décadas de letargia, apatia e imobilidade, naquele plúmbeo e belo dia de chuva, decidi voar, sem mais nem porquê; certos atos não se explicam, só se executam, durante e depois: sorria! Você não é a ruidosa máquina de colher laranjas! Flexionei as pernas e impulsionei o corpo, um salto libertário para a vida que fica no alto, no baixo, no interior do planeta e da cabeça. Alcei o voo do chega!, do basta!, do foda-se o mundo que eu quero viver! A adrenalina emotiva produzia calor, rebatia o frio da garoa fina e da atmosfera rarefeita. Farto de ser homem, usufruía minha condição de pássaro, procurando enxotar o pensamento que teimosamente me inculcava a fugacidade daquele arrebatamento. Tanto insistiu que conseguiu seu maléfico intento: o motor tossiu, tossiu, falhou; as asas rígidas e longas amoleceram e gotejaram, como sorvete de pistache. Reeditado Ícaro, despenquei qual um fragmento de estrela, incandescente corpo celeste oriundo de uma galáxia distante, desfrutando radiante meus segundos de brilho. Morri, porque toda mudança é uma forma diferente de morrer. Todavia, desta feita, morri feliz. Graças àquele sofá comprido e macio. E àquela senhora de tez muito branca e voz amena. Atônito, corri os olhos por aquela sala espaçosa e atravancada: um enorme televisor exibia um dos mundo animal da National Geographic, parecia pesado; não o programa, o televisor. Ao longo dos quatro cantos havia uma infinidade de imagens sacras, porta-retratos, estatuetas, souvenirs diversos, tudo sobre móveis antigos, de madeira de lei. Nas paredes, quadros, muitos quadros, paisagens, em sua maioria. O maior deles despertou minha atenção: exibia o rosto de um homem branco com sobrancelhas espessas, olhos pequenos e intensos, ligeiramente calvo, de sorriso tímido e expressão inteligente. Parecia me dizer: "seja bem-vindo à minha casa." Foi nesse exato momento que deixei de ser pássaro e voltei à condição de homem, e, o melhor é que me senti maravilhosamente bem, tomado por uma sensação inexprimível de bem-estar, de paz comigo e com o universo.
A voz da senhora de pele muito branca, ao invés de sacar-me de meu devaneio, fundiu-se a ele de maneira sutil: "Qual o seu nome, meu filho?" Não soube responder de imediato; a transmutação, o salto, a viagem atemporal, extra-dimensional através do firmamento fizeram-me esquecer de mim. Mas, paulatinamente, minhas memórias humanas retornaram. Falei meu nome, ela disse o dela: Eloíza. Ofereceu-me café. Conversamos, horas e horas, nas quais percebi estar diante de uma pessoa sábia, muito sábia. Falamos das maravilhas dos mundos antigo e moderno, da Renascença, de Ben-Hur, da administração do Faraó Akhenaton, das origens da terracota. Ela me propôs novas viagens, desta feita sem falhas, sem quedas. Aceitei de pronto. Ensinou-me a técnica para me manter suspenso, bastava pensar em coisas boas, permitir o afluxo de sentimentos bons, amar e sorrir, sempre e somente.
Segurou minha mão esquerda e me conduziu em torno do globo, voltas e voltas e voltas, trânsito em épocas distintas, mostrou-me grandes feitos de grandes homens. Mas não somente o belo, pois, "o espírito humano não se compõe só de beleza, é também grotesco, feio, sujo e bizarro". Vi o produto da intolerância e mesquinhez humana, vi guerras, muitas; sangue, litros e litros do líquido carmesim a manchar indelével almas e naturezas, mortas, quase sempre.
Fizemos muitas viagens interessantes. Contudo, eu era apenas um forasteiro que caíra do céu. O mesmo não se pode dizer acerca da sapiência de Dona Eloíza, cuja fama atraía uma multidão de sequiosos e necessitados. Filas. Romarias diárias, caravanas oriundas de todas as partes, próximas e longínquas. Ricos, pobres, doutores, analfabetos, brancos, negros, amarelos, miscigenados, todos em busca dos sábios aconselhamentos, da luz, da resolução de seus problemas. Entre panos de prato, livros, revistas, anotações e contas, pródiga, ela distribuía soluções e sorrisos. Promovia reconciliações, celebrava casamentos, arrebatava endividados da forca; não existia, para a Sábia Eloíza, túnel hermético ou logradouro sem saída.
Igualitária, justa, não mensurava pessoas. Certa feita, um político prepotente, acostumado a regalias e paparicos, pretendeu privilégios antecipatórios em detrimento dos demais pacientes que aguardavam, pacientes. Exasperada, ela explodiu: "Mas que merda! Se Vossa Excelência se considera mais importante que os outros que aqui estão, e, por isso requer prioridade, faça o seguinte: defeque num pote e traga aqui. Se vosso parlamentar excremento exalar um odor perfumado, atendo-o primeiro." Cabisbaixo, o homem público foi postar-se ao final da fila.
Os dias passavam, solenes e felizes. Vez ou outra, alçávamos voo, Dona Eloíza e eu, o único a receber as instruções. Não sei por que fui o escolhido. Talvez empatia entre espíritos curiosos, buliçosos. Voávamos e eu aprendia, novos acréscimos de conhecimento a cada viagem. Porém, dentre todas as lições ministradas por Dona Eloíza, a maior, indubitavelmente, dizia respeito ao valor da família. Jamais vou esquecer aquelas ruidosas e festivas noites de Natal, os enfeites, os pisca-piscas, os amigos-ocultos, os presentes sorteados, as orações de mãos dadas, os sorrisos profusos, o "ciscar pra dentro", as mesas fartas e ela no centro da sala, maestrina habilidosa a reger com amor sua bela, louca e perfeita orquestra familiar.
Entretanto, a luz emanada por Dona Eloíza não era suficiente para iluminar o mundo, que seguia girando, com sua superfície abarrotada de humanos, dia a dia mais estúpidos e embrutecidos. Melancólica, olhos mareados, cada nova notícia funesta suscitava um comentário que se tornara recorrente: "Acho que já vivi demais..."
Era um dia cinza, um dia triste. Uma bruma fria ocultava a cidade e seus habitantes. Reinava um silêncio opressivo, não se ouvia voz humana, nem ruídos de veículos, nem cantos de pássaros. As folhas condensavam a fina garoa, gotejavam, monotonamente. Qual a cidade, o silêncio dominava a casa, parecia que o ar se tornava sólido, pesado. Uma espécie de languidez se apoderava de meu corpo, sentia uma pressão estranha no peito, como se meu coração se transmutasse, gradativa e dolorosamente, em pedra. Dona Eloíza, com o rosto pálido, profundas olheiras, mas não menos bela, disse-me com aquela voz calma que transmitia calma: "Filho, preciso falar-lhe." Apurei os ouvidos, concentrei-me, ávido por novos saberes. Contudo, desta feita, não houve ensinamentos, ao menos, não o que eu esperava. "Farei minha última viagem, mas, dessa vez, tenho de ir só. Estou cansada, muito cansada... Parece que tudo o que fiz pelas pessoas foi em vão. Só o que vejo são desgraças, intolerância, discórdias, guerras, pessoas matando pessoas por qualquer motivo..." "Não!" - interrompi-a - "Nada foi em vão. O mundo não seria o mesmo sem a senhora, sem sua sabedoria, seus ensinamentos valiosos." "Talvez..." - retorquiu - "Mas o fato é que preciso descansar... Cuide-se, meu filho, e lembre-se do que lhe ensinei, não se deixe influenciar pela mesquinhez alheia, seja diferente, seja você." Abraçamo-nos e choramos. Ela reuniu a família, despediu-se de todos e partiu. A neblina, a garoa, o silêncio daquele dia estenderam-se por todo aquele mês. A Mãe Natureza pranteava a partida de Dona Eloíza. O Mundo ficara mais burro sem ela...
Meses depois, em uma noite de lua cheia, o anjo de asa quebrada teria se espatifado, não fosse aquele confortável sofá. Contou-me sobre a chegada de Dona Eloíza ao Céu. "Uma grande festa!" - disse-me ele - "Há milênios não se via tamanha celebração... Arrisco-me mesmo a dizer que a Festa de Dona Eloíza só perde para a do regresso do Filho de Deus. Também, pudera, o organizador tem excelente gosto, Doutor Muniz, você o conheceu?" "Infelizmente, não" "Sim, nunca vi tamanho luxo, tinha até candelabro... E os comes-e-bebes, então? Hum... Dá água na boca só de pensar... O encontro entre eles foi a coisa mais emocionante jamais vista nas plagas celestiais. Até o Todo-poderoso, que é duro na queda, chorou. Parecia que aquele abraço nunca teria fim. Foi lindo! Depois, dançaram agarradinhos ao som de "Unforgettable", magistralmente executada pela Glenn Miller celeste... Nossa! Fico arrepiado só de lembrar..." À medida que ele falava, as imagens se formavam em meu cérebro; tinha ímpetos de rir e chorar, concomitantemente. "Ah!" - prosseguiu - "ela me pediu que lhes dissesse para ficarem tranquilos, pois sempre velará por todos lá de cima... Dona Eloíza é um anjo, sabia?" "Sim." - retorqui - "Sempre soube disso..."


Carlos Cruz - 20/03/2011

domingo, 2 de janeiro de 2011

O Gato Mau



Era uma vez um gato. Um gato mau. Além de mau, mal-humorado. Ficava fulo quando alguém dizia: "olha, que gatinho bonitinho!" "Gatinho bonitinho é o caralho!" - dizia, balouçando o pênis. Um belo dia, uma bela jovem o viu na via e se apaixonou enlouquecidamente pelo bichano. "Bichano é o puto do seu pai!" Ops, desculpe-me. ...e se apaixonou perdidamente pelo felino. Mas ele, bruto que só, nada quis com a pobre moça. "Moça o cacete! Vou mostrar a vocês do que é capaz uma mulher apaixonada. Esse gato há de ser meu!" Cabeleireiro, manicure, banho de loja, batom vermelho, perfume de feromônios e uma lata de sardinha como plano B. Funcionou. Os vizinhos não dormiram aquela madrugada, tamanho o alarido produzido pelos amantes. Pela manhã, cara amassada, remelenta, a mulher arrasta o corpo dolorido para casa. Após o banho, o inexorável espelho. Vê olhos fundos em órbitas fundas envoltas por fundas olheiras. Ao fitar as pernas, depara-se com sulcos esbranquiçados e sinuosos, lembranças de uma noite animal que jamais desapareceriam e seriam transmitidas aos seus descendentes que, por sua vez, repassariam aos seus. Muitos anos depois, um homem chamado especialista poria uns nomes feios e esquisitos naquela coisa feia e esquisita, cuja simples pronúncia do designativo mais simples faria estremecer até a dama mais recatada: hidrolipodistrofia ginóide, dermatopaniculopatia edemato-fibroesclerótica ou, simplesmente, celulite.

Carlos Cruz - 13/07/2010