segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Rubicundo e Nauseabundo II - A Missão



Rubicundo e Nauseabundo, após a bem-sucedida, ilustrativa e edificante incursão à igreja evangélica protestante, decidem testar as leis de Newton, revogá-las se possível. O experimento inicial consiste em tentar fazer com que seus corpos ocupem o mesmo lugar no espaço. Afastam-se um do outro, cada qual dez passos. A seguir, fazendo o percurso inverso, correm à toda, chocando-se violentamente. Repetem a experiência quatro vezes. Zonzos e bastante machucados, desistem.
- Caralho, fedorento, essa lei não dá pra transgredir.
- É certo, preeminente vermelhão. Todavia, a partir de nossa malfadada experimentação, cheguei a uma conclusão.
- Qual?
- O homem é um ser frágil e patético... E não possui alma.
- Mas, shit man, por que meandros tortuosos chegou a tão profunda ilação?
- Silogismo simples, caro amigo. As velhas premissas. Sócrates, Platão, Aristóteles. O empuxo de Arquimedes.
- Não compreendo. O que tudo isso tem a ver com nossas equimoses, entorses e fraturas?
- Segundo Isaac Newton, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, correto?
- Sim.
- Utilizamos nossos corpos a fim de comprovar a referida lei, o que sucedeu, está certo?
- Também está.
- Veja bem: considerando a grande velocidade que imprimimos em nossa corrida - o que pode ser constatado através dos vários ferimentos em nossos corpos - nossas almas, etéreas e imateriais, caso existissem realmente, deveriam ter-se projetado e fundido, o que não ocorreu.
- Brilhante, fétido colega. Contudo, convém lembrá-lo que a alma é invisível. O Grande Mahatma Gautama Buddha o disse.
- Sim, é verdade. Ele também disse que a alma é a quintessência da vida. Portanto, se vivos estamos, não possuímos alma, uma vez que, dada a intensidade do impacto sucedido há minutos atrás, elas decerto estariam amalgamadas, planando por aí.
- Por falar nisso, lembrei que está na hora de você espremer os furúnculos de minha bunda.
- Vira.
Furúnculos espremidos, pus segregado, primeira experiência encerrada, Rubicundo e Nauseabundo passaram para a fase seguinte: comprovar, por meio da análise científica, o preceito irrefutável que mantém os planetas em órbita e faz despencar a fruta madura na cabeça dos preguiçosos tosquenejantes: a lei da gravidade. Fuçaram lixeiras, à caça dos objetos essenciais à realização do ensaio. Êxito nos preparativos, conduziram o gato e o vira-latas até o ponto mais alto do viaduto, sobre a movimentada marginal, de onde podia-se contemplar toda a beleza cinza e quadrada da megalópole. Animais por sobre o muro, prontos para serem sacrificados em nome da ciência, eis que Nauseabundo fita os olhos do pequeno e negro felino. Lembra-se do gato, personagem de um desenho animado que assistira pela vitrine da loja de eletrodomésticos. Desiste da experiência. Prostra-se. Rubicundo olha-o de soslaio, cara de comiseração. Neste momento, questionando-se sobre ser ou não ser um niilista, ouve "a voz" esganiçada:
- Ei, catinguento!
Procura o autor do chamamento, olha em redor e derredor. Seu amigo Rubi fita o horizonte, em seu rosto uma introspectiva e meditabunda expressão.
- Ô morrinhento! Aqui embaixo!
O aturdimento deu lugar ao assombro que deu lugar ao êxtase. O gato falava, puxava papo. Primeiro, repreensão, depois exortação.
- Você e seu parceiro vermelho são dois imbecis! Enveredaram por um caminho que não leva a lugar algum. Filosofia, ciência, religião, astros, cabala, Newton, Buda, Arquimedes, Aristóteles, Nietzsche? Bah! Tudo balela para distrair pseudo sábios, religiosos de araque, hermeneutas metidos à besta, exegetas de merda, especuladores desonestos cobiçosos apaixonados pelo vil metal. Vocês têm que trabalhar pelo bem-estar social. Justiça. Liberté, igualité, fraternité. Combater o capital da capital. Destruir a mais-valia. Search and destroy. A burguesia fede. Hay que endurecerse pero sin perder la ternura. Proletários de todo mundo, uni-vos!
Dito isto, desembestou via pública afora, perseguido pelo vira-latas. Conseguiu despistá-lo. Nauseabundo viu quando o bichano mergulhou em uma lata de lixo e saiu, caminhando nas patas traseiras e calçando algo que pareciam botas de couro marrom. "Que estranho." - matutou - "O gato de botas, além de botas, tinha longa, espessa e encarapinhada barba. Como não percebi antes?"
Rubicundo prosseguia em sua contemplação, alheio a tudo. Sacudidelas, exposição da revelação de Gato de Botas Félix Marx, plano B em prática.
Centro da cidade. Banco Central. Confusão, empurra-empurra, pandemônio, queda da bolsa da senhora idosa. Seguranças perdidos entre os baixos salários, o cumprimento do dever e o nojo de agarrar aqueles dois malucos cobertos de bosta, portando quatro baldes transbordando excremento, granadas de esgoto e coquetéis molotov feitos com garrafas cheias de urina. Arremesso na boca do caixa. Dinheiro sujo. Crash mal-cheiroso. Corpo de bombeiros acionado. Uniforme vermelho-cáqui maculado. Camisa-de-força. Condução a contragosto. Banco interditado por vários dias. Trabalho intenso da turma da faxina. Prejuízo - pequeno, é verdade - no bolso do banqueiro balofo. Missão cumprida, enfim.
Periferia. Zona rural. Manicômio Judiciário Carl Gustav Jung. Nauseabundo e Rubicundo, nus e extremamente contrariados, tomam banho. Uma grossa mangueira expele dezenas de litros de água por segundo. Os gritos de ambos ecoam nas dependências do estabelecimento de saúde mental:
- Penitenziagite! Penitenziagite! Penitenziagite!
Horas depois, cela acolchoada, cabeças raspadas, envergando alvas camisas-de-força, Nauseabundo - cuja fetidez incrustada não era extirpada nem à força de litros de desinfetante - propõe nova experimentação, desta feita, lúdica:
- Vamos brincar de lei do mais forte?
- Putz, já é.
Batem as cabeças, com toda força, dezenas de vezes. Tombam inconscientes, simultaneamente. Lá fora, em algum lugar do telhado, um gato ronroneia, langoroso.

Carlos Cruz - 02/09/2007

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Memórias do Cárcere



Alberto era um exemplo perfeito de que a punição pela privação da liberdade, mesmo no decadente sistema prisional brasileiro, podia dar bons resultados. Livre, após cumprir quatro anos de reclusão por roubo, era um novo homem, reabilitado, pronto para reintegrar-se à sociedade. Estudou Direito, curso dinâmico, especializando-se na esfera penal. Defendeu, aguerridamente, o verdadeiro responsável por sua transformação: Tonhão Tripé, seu antigo companheiro de cela. Bastaram poucos meses para ter seu esforço recompensado: Tonhão foi beneficiado com o regime de progressão de pena. Radiante, Alberto aguardou, à porta do presídio, a saída de Tonhão. Tão logo o viu, correu em seu encontro, abraçando-o carinhosamente. Tentou beijá-lo.
- Conseguimos, meu amor.
- Ih, sai pra lá, sua bichona escrota! Tô livre e louco pra comer uma xereca. - replicou Tonhão, afastando Alberto com um safanão.
- Seu filho da puta ingrato! Depois de tudo que fiz por você, é assim que me paga?
- Assim que descolar uma prata, pago seus honorários, Dr. Alberto. Agora, vai pra puta que o pariu!
Alberto ficou ali, estático, vendo seu grande amor afastar-se. À noite, na boate gay, afogou seus dissabores com muitas doses de uísque. Terminou na cama suja do motel de quinta, com o negro bem-dotado com cara de mal. Pela manhã, à ardência no esfíncter somou-se a constatação da ausência do negão, da carteira, do telefone celular e do carro. "Porra! Quem foi o filho da puta que disse que o crime não compensa? Desde que abandonei aquela vida, só tomei no cu..." - refletiu. Saiu do motel e seguiu direto para a loja de armas.
Rodou no primeiro assalto, dois dias depois. Na cadeia, conheceu Tião Pé-de-mesa, o terror dos estupradores. Mas essa é uma outra história...

Carlos Cruz - 08/10/2007

sábado, 6 de outubro de 2007

Power Metal Caipira



Malgrado o visual doidão - cabelo moicano tingido de verde, alargadores nas orelhas, tatuagens e piercings por todo corpo e rosto - o que Kid Chitão gostava mesmo era de música sertaneja. Onde houvesse um show de alguma das múltiplas duplas ou cantores de seu estilo musical preferido, lá estava ele, figura fácil destacando-se no mar de camisas xadrezes, chapéus, cinturões, calças jeans e botas de couro cru marrons.
Certa noite, após levar um fora da namorada Mary Lu, durante a apresentação da dupla Chapelão e Chapeludo no Pátio de Exposições de sua cidade, Kid Chitão, profundamente abatido e desolado, entregou-se, sem rédeas, aos braços do deus Baco, tomou todas e mais algumas. A embriaguez veio à galope. Ao final do espetáculo, completamente bêbado, acabou adormecendo num dos bancos da praça central, sob o busto de D. Pedro I, montado em seu cavalo. Lá pelas tantas, despertou com um safanão de um policial militar:
- Ô Cachaça! Acorda aí! Não pode dormir aqui não! Ô! Ô!
Kid abriu lentamente os olhos, o rosto do PM aos poucos formando-se à sua frente; viu olhos injetados e vermelhos - sangue - viu sangue naqueles olhos. Sentou-se com dificuldade, meio atordoado. Tartamudeante, redargüiu da única forma que lhe veio à mente naquele momento:
- Seu guarda, eu não sou vagabundo, eu não sou delinqüente, sou um cara carente. Eu dormi na praça pensando nela. Seu guarda seja meu amigo, me bata, me...
O golpe do cacetete no dorso interrompeu a argumentação musical de Chitão. Ainda levou mais duas porradas antes de debandar, trôpego, em meio à saraivada de impropérios:
- Odeio música sertaneja! Vaza, seu arrombado! Vaza, porra!

Carlos Cruz - 16/08/2007

Orgasmatron




Asdrúbal, sessenta e oito anos, recusava-se a aceitar o peso dos anos. Desdenhava dos antigos colegas de farra que eventualmente encontrava jogando damas na praça ou em frente às casas de bingo. Aficionado por heavy metal e todas as variações do gênero, tatuagem de caveira no ombro, brinco de crucifixo na orelha, cabelos longos tingidos de preto azeviche e cuidadosamente despenteados, jaquetão de couro, montado em sua Harley Dayvidson, ainda arrancava alguns suspiros das mulheres da cidade, a maior parte interessada em sua conta bancária, é verdade. Gabava-se de sua virilidade, de sua potência sexual sem uso de medicamentos ou afrodisíacos. "Podem acreditar, o papai aqui nunca brochou nem tampouco precisou de Viagra." - dizia aos amigos incrédulos.
Convidou Eliana, a garota mais cobiçada do bairro, para dar uma volta em sua moto. Ela aceitou. Boquiabertos, os amigos viram-na passar, agarrada à cintura de Asdrúbal, exibindo sua enorme bunda, delineada pela justíssima calça strech.
Após algumas cervejas no Juda's Bar, seguiram para o motel. Enquanto Eliana se despia, Asdrúbal entrou no banheiro, retirando do bolso da jaqueta sua arma secreta. "Buchinha-de-bode. Levanta até defunto." - dissera-lhe o cearense. "Mas tem que tomar só uma colherinha de chá. É muito forte. Se tomar muito, o sujeito corre o risco de empacotar." Asdrúbal levou a garrafa à boca, tomando vários goles da beberagem. "Hoje, o bicho vai pegar. Vou fazer essa gostosa subir nas paredes." E fez. O efeito da garrafada foi imediato. O pênis de Asdrúbal ficou duro como pedra e assim permaneceu durante muitas horas, horas de muito sexo, ao som de muito heavy metal. Asdrúbal estava prestes a gozar pela quarta vez, seu pênis pulsava no interior do ânus de Eliana, que rebolava sua deliciosa e descomunal bunda. Foi quando sentiu a "pontada" no peito, seguida da intensa dor. Tombou para o lado, morto. O pênis, que recusava-se a amolecer, apontava para o teto. O pequeno mas potente Cd player tocava "Orgasmatron", do Motörhead, a música preferida de Asdrúbal, cujo ricto de morte era um sorriso de orelha a orelha. Morrera feliz.

Carlos Cruz - 28/09/2007

Cefaléia





- Dor de cabeça de novo? Porra, é a quadragésima oitava noite seguida que você diz a mesma coisa. Quer saber de uma coisa, enfia essa boceta no cu, que vou procurar na rua! - esbravejou Juvenal, batendo violentamente a porta do quarto. Maria Imaculada tomou um analgésico. Abriu o armário. "Pode sair. Ele já foi." - disse, para o sujeito nu, oculto entre fronhas, lençóis e edredons.

Carlos Cruz - 05/10/2007