terça-feira, 4 de setembro de 2007

Quinze Minutos





Imobilizando ponteiros de relógios e entortando talheres com o poder da mente, tornou-se figura célebre nos anos oitenta. As emissoras de televisão travavam renhidas disputas para tê-lo em seus programas dominicais, pagando-lhe generosos cachês. Alguns diziam que tinha pacto com o Diabo, outros, que era iluminado por Deus. Conquistou fama e fortuna, prodigamente dissipada em festas psicodélicas decoradas com relógios antigos e talheres de prata deformados, regadas a beberagens refinadas e putas caras. Perdeu seu posto de celebridade para o homem que peidava fogo. Ninguém o queria, não dava mais ibope, deixara de ser novidade. Hoje, é visto pelas ruas, fuçando lixeiras, disputando latas de cerveja vazias com outros catadores, as quais amassa à distância, sem usar os pés.

Carlos Cruz - 24/07/2007

Lacucaracha






"COMA UMA BARATA VIVA E GANHE UM CARRO ZERO." - aquela frase, escrita com grandes letras luminosas, que junto às gravuras do automóvel, da barata e do palhaço sorridente, compunham o outdoor gigantesco, estrategicamente fixado em frente ao imponente shopping center, certamente causaria um frio na espinha de Arquimedes se dotado fosse de tal estrutura óssea. Através do vidro transparente do frasco de maionese, leu novamente a propaganda. "Caralho. É muito azar! Acordar transformado em barata, ser capturado e devorado pelo escroto do meu meio-irmão. E, de quebra, o filho da puta sai dirigindo um reluzente carro novo..."
Entraram no shopping. Bem próximo à entrada, havia uma pequena fila, em sua maioria homens, aguardando a vez de tentar a sorte mediante aquela horrenda degustação dos insetos nojentos que traziam consigo. "Era muita sacanagem! Justo ele que sempre tivera um gosto refinado para arte, música e literatura, adepto da boa gastronomia, apreciador dos melhores vinhos, terminar seus dias na forma de um asqueroso artrópode, destrinchado, mastigado e engolido por seu odioso e odiado meio-irmão, cujos gostos e hábitos demonstravam sua tendência à podridão: punk rock, roupas sujas e andrajosas, piercings e tatuagens pelo corpo, histórias em quadrinhos, bebidas e putas de baixa qualidade e preço.
A voz gutural do sujeito alto e bem vestido, ao microfone, interrompeu seus pensamentos. Ao que parecia, o circo dos horrores ia começar. O primeiro candidato, um garoto aparentando ter acabado de ingressar na vida adulta, assim que ouviu seu nome, desmaiou, sendo imediatamente desclassificado. O segundo vomitou só de olhar para a barata que movimentava-se freneticamente no interior do recipiente em suas mãos. E assim, um após o outro, os candidatos foram caindo. Arquimedes via aproximar-se o instante fatídico. Sabia que Aristóteles, seu meio-irmão, não hesitaria quando tivesse de devorá-lo, já vira-o comer coisas bem piores que baratas. "Blaaargh!" Pronto, outra regurgitação, outro candidato fora do páreo. Seu execrável meio-irmão era o seguinte. "Aristóteles da Silva!" - a voz do homem de terno ribombou, fazendo o pequeno corpo de Arquimedes estremecer. Tentou fugir quando Aristóteles retirou a tampa de sua prisão. Não foi ágil o suficiente. Seu meio-irmão, segurando firmemente duas de suas pernas, levou-o à boca. Esperando a dentada fatal, eis que surge a luz no fim do túnel, ou melhor dizendo, o som no fim do shopping. A música de fundo, "We Are The Champions", tocada desde o início da disputa, foi substituída por outra que - Arquimedes sabia - seu meio-irmão detestava: um rock nacional, que fizera algum sucesso nos anos oitenta, cantado por uma banda do tipo "pré-fabricada", cuja letra fazia referência a um romance de Kafka: "A Metamorfose". Arquimedes lera-o várias vezes. Aristóteles, que já exibia todos os dentes, a bocarra escancarada, ao ouvir a famigerada música, titubeou. Sua aparência foi-se modificando, empalideceu, os lábios ficaram lívidos. Mesmo visivelmente enjoado, Aristóteles depositou o desesperado Arquimedes entre suas mandíbulas. Foi quando sentiu a massa quente, oriunda das entranhas de seu meio-irmão, envolvê-lo e, num jorro fétido, projetá-lo para a liberdade. O vômito de seu irmão fora sua salvação. Desembestou no meio do shopping, movimentando alucinadamente suas seis diminutas pernas. Um moleque que assistia à prova, ao ver Arquimedes passar ao seu lado, não pensou duas vezes: pisou com toda a força sobre seu frágil corpo de inseto. Morreria esmagado se o menino não estivesse calçando o novíssimo e caríssimo tênis Myke, provido de quarenta molas confeccionadas em borracha de alta densidade, projetadas para absorver terremotos em estruturas prediais no Japão. "Bendita tecnologia!" - pensou, quando o menino retirou o pé de cima dele. Escapou ileso, embrenhando-se no sistema de esgotos do shopping. Tomou o rumo de casa, situada no mesmo quarteirão do shopping, ocultando-se no quarto de ferramentas do avô, onde raramente alguém aparecia. Ali permaneceu até a manhã do dia seguinte quando, aliviado e surpreso, percebeu que tinha voltado a ser humano.
Sua primeira providência foi reunir seus livros de Voltaire, Kafka, Tolstoi, Dostoievsky, Shakespeare, Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, enfim, toda a coleção de clássicos da Literatura Mundial e Brasileira, depositá-los em um saco plástico e jogar tudo no lixo.
"De hoje em diante, só lerei revistas de fofocas, gibis infantis, jornais sensacionalistas e Saulo Joelho." - sentenciou.

Carlos Cruz - 16/08/2007

Rubicundo e Nauseabundo - Mancômunos Manicômonos



Sexta-feira santa. Meio-dia. Sol a pino. Rubicundo passeia tranqüilamente com seu cachorro imaginário Red Rex no Central Park. Logo após o chafariz em forma de anjo mijão, encontra-se casualmente com Nauseabundo, mal divisado em meio à profusão de moscas varejeiras. Estacam, entabulando breve colóquio:
- Dr. Nauseabundo, há tempos não o vejo! Noto que continua o mesmo velho decadente fedegoso. Ainda na Política?
- Não mesmo, caro camarão. Aquilo fede. Podridão por podridão, fico abaixo do chão.
- Voltou a limpar esgotos?
- Não. Cavo poços. Às vezes, covas. E V. Exa., nos circos da vida?
- Negativo. Vida de palhaço é muito triste. Ninguém mais ri. Palhaço só chora. Ademais, criança é bicho mal.
- Ah. Que pena. Gosto de circo. Uma vez trabalhei num. Limpava a jaula dos elefantes. Aprendi que a similitude, o ponto de aproximação, entre o homem e o elefante consiste no poder altamente elevado que ambos possuem de produzir merda.
- É a mais pura verdade... Interessante isso.
- O quê, Rubicundo?
- O destino. A providência, talvez. Pense comigo: hoje é sexta-feira santa, o sol está a pino porque são doze horas, não posso caminhar neste horário devido a meu problema epitelial, contudo, justo hoje, decidi mandar às favas as recomendações médicas. Daí, encontro você, que não via há meses. Falamos de política, podridão, futum, poços, esgotos, sepulturas, circo, elefantes, palhaços, homens e merda. Não é genial?
- Sei não, amigão. Acho sinceramente que não deve mais contrariar seu dermatologista.
- Porra, Nauseabundo, o fedor afetou seu cérebro? Não percebe o que acabamos de fazer? Filosofamos a mais pura e profunda filosofia.
- Continuo sem nada entender, ínclito Red Bull.
- Tá. Tentarei ser mais claro. Nosso diálogo contém oito substantivos concretos e três abstratos, o que perfaz um total de onze vernáculos, número cabalístico que significa o infinito, o etéreo, a deidade.
- Caralho, definitivamente, o sol derreteu seus miolos.
- Topas um experimento exemplificativo de minha teoria, nobre mal-cheiroso?
- De fétido e de louco, todos temos um pouco. Manda.
Horas depois, tremendo corre-corre, os evangélicos em dabandada, atropelando-se uns aos outros. Nave balouçante. Balbúrdia. Gritos.
- Abriram as portas do Inferno! - alguém bradou.
Rubicundo, coberto de bosta, fita Nauseabundo - que a despeito da rubra tinta sobre o corpo continuava fedendo mais que o amigo - olhar altivo satisfeito, sentencia:
- Viu só? Não falei? Debandada na abadia. Filosofia cabalística. A religião nos limites da simples razão. Somos merda. Somos Deus e o Diabo. Somos uno.
- E fedemos mais que a morte.
- É isso aí. Agora você entendeu.
- Entendi.
- Vamos sacramentar?
- Como?
- Eu cago, você mija. Eu arroto, você peida.
- Putz, já é.

Carlos Cruz - 25/08/2007