sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Raimunda




Raimunda era uma mulher infeliz, muito infeliz. Obrigada a passar os dias reclusa, trancafiada em seu pequeno quarto sem janelas, longe dos olhares curiosos dos vizinhos e parentes. A única pessoa com quem tinha contato era sua mãe. Diariamente, Dona Jurema levava-lhe as refeições e passava alguns minutos na companhia dela, em silêncio. Não havia espelhos no quarto. Raimunda sabia o porquê. Nascera com um defeito congênito, um defeito que fazia dela um ser bizarro, diferente, uma anomalia ambulante: tinha cara de bunda e bunda de cara. Isso mesmo, por alguma razão que só Deus - ou o Diabo - sabiam, seu corpo havia se formado com essa estranha inversão. Só essa. O resto estava todo em seu devido, anatômico e fisiológico lugar. Ou quase. Em seu rosto ou, melhor dizendo, em sua bunda que ficava no lugar onde deveria estar o rosto, havia aquilo de que toda bunda é dotada: um ânus. É. Raimunda não tinha só cara de bunda, tinha cara de cu.
O parto de Raimunda deu um tremendo trabalho à Dona Sebastiana, a parteira. Trabalho e um baita susto. Por pouco, ela não caiu desacordada sobre o ventre da paciente quando viu brotar de suas entranhas aquela coisinha miúda, sem cabelos e provida de um rechonchudo par de glúteos no lugar onde deveriam estar olhos, boca e nariz. Saiu desabalada porta afora quando, ao procurar a origem daquele choro agudo, deu de cara com aquele rostinho angelical, de bochechas coradas e olhinhos azuis. Dir-se-ia um lindo rosto se acaso não estivesse situado em local tão impróprio. A carreira da parteira terminou em tragédia sob as rodas da carreta carregada de cuecas e calcinhas, contudo, tão desventuroso destino mostrou-se oportuno àquele pequenino ser humano recém-vindo ao mundo dos humanos humanos e desumanos: preservar-se-ia o segredo. Sabe-se lá por quantas mãos de especialistas-cientistas-curiosos Raimunda não teria de passar caso seu caso fosse dado ao conhecimento geral. Mas isso não aconteceu, Dona Jurema guardou muito bem guardada, trancou muito bem trancada a razão de seu infortúnio: Raimunda, a bela menina com cara de bunda.
Raimunda cresceu. Aos dez anos, quando começou a fazer suas necessidades defecatório-fisiológicas sozinha, tinha enorme dificuldade em acertar o vaso sanitário. Acabava sempre cagando no chão do banheiro e na tampa do vaso. Se estivesse com diarréia, então... era merda para todo lado. Com o tempo e a prática, foi-se adaptando ao mundo que não havia sido projetado para ela.
O tempo passou, Raimunda chegou à maioridade, imersa na solidão melancólica de seu quarto, cujo mobiliário era modesto como sua vida: uma cama de solteiro, um criado-mudo, uma estante com alguns livros e um aparelho de televisão com imagem em preto e branco, sua única janela para o mundo. Gostava de novelas e filmes românticos. Apaixonou-se um sem número de vezes por um sem número de atores. Numa fria noite de inverno, descobriu seu especial interesse por homens narigudos, enquanto assistia ao filme Cyrano de Bergerac, protagonizado por Gérard Depardieu. Era romântica, sonhadora, amava a vida com ardor, ainda que não soubesse o que era a vida além daquelas quatro paredes.
Certo dia, Raimunda sentiu um forte cheiro de perfume e ouviu uma voz masculina advinda de outro cômodo da casa. Pelo teor da conversa e os risos abafados, parecia que mamãe tinha arranjado um namorado. Sairiam para jantar. Raimunda esperou. Quando ouviu a batida surda da porta principal da casa e o subseqüente silêncio, tratou de movimentar a maçaneta. A porta abriu! Sua mãe, provavelmente sob o efeito do frenesi causado pela expectativa de estar novamente com um homem, havia esquecido de trancar a porta do quarto. Finalmente, após longos dezoito anos, Raimunda saberia como eram as coisas do lado de fora de sua prisão. Foi andando de costas, de modo a ver por onde andava. Conheceu o quarto de sua mãe, a pequena cozinha, o banheiro, a sala. Voltou à cozinha, vira algo que lhe chamara a atenção. A porta! Havia uma chave no interior da fechadura. Girou a chave, a maçaneta e... ar puro, finalmente! O frescor da atmosfera noturna atingiu em cheio seu rosto. Quedou-se vários minutos respirando aquele bendito ar. Por que sua mãe a havia privado disso por tanto tempo? Ensaiou um primeiro passo porta à fora e recuou, o medo do desconhecido a atingiu em cheio. Como um animal que permanece muito tempo enjaulado, foi tomada do receio de abandonar a segurança de sua cela. Sabia que era arriscado sair porquanto sabia que era uma mulher diferente, suas mãos, seus olhos e o monitor do televisor desligado lhe mostraram o que sua mãe tanto esforçou-se por lhe ocultar. Mas o desejo de liberdade, a curiosidade, a vontade de ver ao vivo e a cores tudo aquilo que assistira em cores neutras na tela do pequeno eletrodoméstico falaram mais alto. Hesitantemente, deu alguns passos no quintal de sua casa. Chegou ao portão que dava para a via pública. Estacou. Era o passo mais difícil. Respirou fundo. Puxou o trinco. Escancarou o portão. Estava na rua. Estava livre.
Caminhou devagar, deslumbrando-se com cada casa, cada prédio, cada árvore, cada poste, cada letreiro luminoso que encontrava ao longo da calçada. Na primeira esquina, descobriu o mal que habita a alma humana. Uma gangue de skinheads, ao redor de um latão em chamas, planejava seu próximo ataque em prol da supremacia branca. Raimunda tentou retroceder, mas era tarde: haviam-na avistado. Pensou em correr, mas o medo e a convicção de que não desenvolveria suficiente velocidade paralisou suas pernas. Limitou-se a virar-se de costas e fechar a abertura do manto com zíper, tapando seu rosto. Usava um manto negro, uma espécie de burka, que cobria seu corpo da cabeça aos pés. Sentia uma forte pressão, um turbilhão no estômago, como se lá houvera uma cambada de gatos em conflito. A gangue aproximou-se, rodearam-na. O mais alto, que parecia ser o chefe, disse:
- Ora, vejam só. Uma muçulmana perambulando sozinha nas ruas a uma hora dessas. Mamãe não te avisou que isso é perigoso, moça?
Raimunda não respondeu, todos os pêlos de seu corpo eriçaram-se, o estômago dava voltas e voltas, a pressão recrudescia perigosamente.
- As ruas estão cheias de indivíduos malvados que adorariam encontrar uma muçulmanazinha indefesa para distraí-los.
- Deixa a gente foder ela, chefe! - pediu um careca baixinho.
- Calma aí! Primeiro vamos ver a cara dessa puta.
No mesmo instante em que o chefe dos carecas arrancava, de supetão, o manto de Raimunda, ela perdia a batalha contra seu estômago. O jorro diarréico atingiu em cheio o rosto do líder do grupo, cobrindo-o de merda de cima a baixo. Ao ver Raimunda do jeito que viera ao mundo, os espavoridos carecas debandaram, atropelando-se uns aos outros, aos gritos de "alienígena! alienígena!"
Raimunda usou as páginas de um livro - Mein Kampf - que um dos skins havia deixado cair na fuga, para limpar-se. Vestiu-se. Recompôs-se. Pensou em voltar para casa mas ouviu música. Decidiu verificar a origem do som, a vitória sobre os carecas incutira-lhe confiança no espírito. Era um circo. Ela vibrou! Sempre quisera assistir a um espetáculo circense. Mas, com aqueles trajes, andando de costas e sem dinheiro para o ingresso, como entraria? Teve uma idéia. Esgueirando-se furtivamente em torno da tenda, encontrou um pequeno rasgo, por onde, ainda que com apenas um olho, podia ver o que se passava lá dentro. E o que viu fez seu coração palpitar: um homem baixinho, com pernas onde deveriam haver braços e braços onde deveriam haver pernas, fazia malabarismos com bolas e pinos, enquanto um palhaço de duas cabeças discutia e dava tapas em si mesmo, arrancando gargalhadas da platéia. Então, havia outros como ela! Não era a única diferente, a única anomalia ambulante na face da Terra! Continuou a assistir ao espetáculo. Viu trapezistas com quatro braços e quatro pernas, com pés no lugar de mãos e mãos no lugar de pés; um homem que não tinha olhos nem nariz, só uma enorme boca com a qual engolia quarenta e cinco espadas ninja; uma mulher gorda que peidava fogo, parecia um lança-chamas humano; outra que possuía vinte e dois seios ao longo do corpo, dava de mamar a vinte e duas crianças; o homem-galinha, que tinha penas, bico, cacarejava e comia milho. Por fim, o apresentador anunciou a atração principal da noite:
- Que rufem os tambores!... Respeitável público, El Gran Circo De Los Horrores tem o prazer de lhes apresentar o astro maior de nossa companhia, ele já foi político, juiz, empresário, escritor, ator de filmes eróticos, servidor público, policial, jornalista, michê, rufião, modelo vivo, operário em fábrica de preservativos, ele não precisa matar a cobra para mostrar o pau, ele ajoelha para rezar e também para mijar, ele não é metafórico, não usa Jimo Cupim, ele é dotadão, ele é... Ni-co-lau, o Ca-ra-de-pauuuuu!!!
A explosão de aplausos acompanhou, sincronicamente, os batimentos cardíacos de Raimunda. A taquicardia somada ao calor que lhe assomou ao corpo não deixava dúvidas: fora atingida pela seta inflamada do Cupido. Com o coração aos pulos, sem piscar os olhos, assistiu ao número do homem moreno, alto e musculoso que exibia, despudoradamente, um avantajado e portentoso pênis ereto no exato lugar onde deveria estar o nariz. O homem ergueu toalhas encharcadas, bolas de ferro, halteres, anões obesos e outras pesadas coisas mais com o pênis. Foi suspenso por uma corda amarrada ao bilau e voou sobre as cabeças dos boquiabertos espectadores. O gran finale consistia numa espécie de arremesso de porra à distância: o homem tinha de acertar um pequeno balde posto a uns cinco metros de onde estava. Silêncio total na platéia, momento de expectativa, tambores em pianíssimo. Alguns fotografavam, outros filmavam. O homem masturbou-se, masturbou-se, masturbou-se e... veio a primeira golfada de sêmen. Subiu, subiu, subiu - ninguém respirava - depois, em curva descendente, desceu, desceu, desceu e voilá! Acertou o centro do balde, sem respingar sequer uma gota no picadeiro. O público foi ao delírio, palmas, assovios, uivos, gritaria, algazarra total. Mas, decerto, ninguém vibrou mais que Raimunda, seu coração, sua alma, seu corpo, seu sexo clamavam por aquele homem.
Raimunda escondeu-se atrás de uma das rodas de um dos caminhões que compunham a frota circense. Aguardou, com ansiedade, a saída do público, o recolhimento dos artistas, assistentes e funcionários, o apagar das luzes. Pé ante pé, deslocou-se até o trailler onde se lia, em letras roxas: "Nicolau, o Cara de Pau". Hesitou, à porta, por alguns minutos. "Ele vai me atender ou me enxotar? Serei bem recebida? Ele vai gostar de mim?" Entretanto, essas dúvidas, esses temores naturais não vingaram ante a chama avassaladora que devorava Raimunda. Bateu. Três batidas secas. "Quem é?" - indagou, de dentro, uma voz grave. "Meu nome é Raimunda. Preciso falar com você." - parecia que seu coração pulsava na garganta e seria cuspido a qualquer momento. A porta abriu-se devagar. Nicolau, com seu nariz-pau descomunal, agora murcho, ficou olhando para os cabelos de Raimunda. "Aqui embaixo." Nicolau baixou os olhos, a glande roçou seu umbigo. Seus olhos se encontraram, tudo dependia daquele encontro de olhares, da mensagem muda que seria mutuamente transmitida. Gostaram do que viram. Nicolau sorriu, Raimunda sorriu. "Posso ajudá-la?" "Desculpe incomodá-lo a essa hora. É que assisti ao espetáculo e gostei muito da sua apresentação." "O que é isso? Incômodo nenhum. Entre, por favor." Raimunda não conseguia parar de sorrir. "Sente-se, fique à vontade. Aceita um uísque, uma cerveja, um refrigerante?" "Uma cerveja, por favor. E prefiro ficar em pé, se sentar, não conseguiremos conversar, você compreende?" "Oh, claro. Desculpe-me. Vou pegar as cervejas." Conversaram e beberam durante horas, cada qual contou sua história. Nicolau, que tinha o dobro da idade de Raimunda, disse-lhe haver descoberto a inexistência da normalidade humana, todos, absolutamente todos os homens tinham algum defeito, fosse no corpo, na mente, na alma ou no coração. "Há homens que, embora possuidores de um físico perfeito, apresentam toda sorte de defeitos morais, são homicidas, sociopatas, egoístas, avarentos, corruptos, degradados, dissolutos, ladrões, invejosos, estelionatários, escroques, a lista é gigantesca. Perto desses homens, somos as pessoas mais lindas e sãs de todo o mundo." - argumentou Nicolau. "Por falar nisso... Como você é bonita." Raimunda corou, mas não se esquivou do beijo. Percebeu que algo se mexia no rosto de Nicolau, era, obviamente, o pau, que crescia e endurecia assustadoramente. Mas Raimunda não se assustou, pelo contrário, entregou-se por inteiro àquele homem diferente, lindo e perfeito que a fez descobrir a beleza e a perfeição de sua própria diferença. Raimunda, nessa noite mágica, tornou-se uma mulher feliz, muito feliz, a mulher mais feliz do mundo.
Raimunda foi contratada pelo dono do circo e ganhou um papel de coadjuvante no número de seu companheiro. Enquanto ele faz seus malabarismos e acrobacias penianos, ela toca Brasileirinho numa flauta especialmente projetada para seu ânus. Devido ao aumento do consumo de refrigerantes e outras beberagens gasosas fundamentais ao bom desempenho de seu mister, ganhou alguns quilos. Perdoou Dona Jurema, que sempre vem visitá-los e trás cuscuz, o doce predileto de Raimunda. Para que a felicidade se tornasse completa, só faltava um rebento, um Nicolauzinho ou uma Raimundinha. Mas, nem um nem outra, há pouco mais de uma semana, nascia en El Gran Circo De Los Horrores uma linda menina, alegria da família, xodó da vovó, futura atração circense, a pequena, fofa, vermelha, testuda e peluda Julieta.

Carlos Cruz - 25/12/2008