sábado, 29 de março de 2008

O Pe(i)dante



Julgava-se a magna quintessência da virtuosa perfeição. O supra-sumo. O eleito. O belo-mor, o inteligente-mor, o irresistível-mor. Refletiu, maquinou, calculou, pensou. Tanto fez que conseguiu: engendrou a fórmula do perfume borbulhante. O incômodo e destoante fedor estava com os dias contados. Finalmente, peidaria cheiroso. Ávido, bebeu dois litros quase de um só gole. A forte pontada no peito arremessou-o de encontro ao chão. O longo e musical flato veio pouco antes do último batimento. Apavorado, constatou que, de todos os anteriores, foi aquele o traque mais fedorento.

Carlos Cruz - 29/03/2008

Um Copo Que Cai



Arduamente, o dia inteiro, labutara sob aquele implacável sol escaldante. Ao cair da noite, voz roufenha, quase afônico, finalmente, uma alma generosa demonstrou compaixão. A reluzente moeda girou no espaço, tilintou na calçada pedregosa, rodou, rodou, acomodando-se, por fim, próximo ao pé direito de Salomão. "Cara. Pé direito. Bons sinais.", pensou.
- Deus lhe pague. - agradeceu ao transeunte caridoso que já ia longe, imerso em seus próprios problemas.
Salomão correu para o Bar do Juvenal, cabeça-de-porco célebre entre a mendicância. Foi direto ao balcão, seus olhos luziam aquele brilho cinza-opaco.
- Aí, Juvenal! Manda uma dose da especial, aquela de rolha.
- É um real.
- Taí. - falou, depositando a moeda sobre a mesa, o cinza-opaco dos olhos acentuando-se ainda mais.
O dono da birosca recolheu a moeda, retirou com cuidado a bonita garrafa de cima da prateleira, pôs o pequeno copo sobre o balcão, serviu a dose do altamente alcoólico líquido amarelo. Salomão salivava, saboreando o momento. Corpo, alma e espírito imersos na agradável liturgia, o ritual tantas vezes repetido, os movimentos de Juvenal, São Juvenal. Rezou em silêncio: "Pai da Desgraça, Santíssimo Deus Que Habita a Garrafa de Cachaça, dai-me a fuga, ministrai-me o santo elixir do esquecimento, enchei-me do suave e benfazejo torpor. Fazei-me nada, porque nada sou."
Circunspecto, levou as mãos ao copo. Antes de alcançá-lo, eis que surge um braço longo e nefasto, um cotovelo profano. Atinge o copo, que cai, cai, cai, espatifando-se no chão do boteco. Salomão fita com raiva o dono do braço, um sujeito bem vestido que bebericava uma garrafa de água mineral com gás, certamente um transeunte que ali detivera-se para aplacar a sede.
- Olhe o que você fez!
- Desculpe. Foi sem querer. Eu pago. A bebida e o copo. Quanto é?
- Não quero seu dinheiro! Não quero que pague outra! Nada trará de volta o que se perdeu! A terra absorveu o líquido assim como absorve a carne, o sangue e a malignidade humana. O homem é um ser rude e mau, merece a dor e o sofrimento por toda a eternidade finita e efêmera de sua desprezível existência!
O homem bem vestido virou as costas para Salomão, dirigindo-se ao dono do bar:
- Caramba! Como tem maluco nesse mundo. Quanto é a cachaça, o copo e a água mineral?
Salomão sentiu a ira aumentar, fluidificar-se e percorrer seu corpo, borbulhante, cáustica, ácida, venenosa. Sacou o pequeno e afiado canivete e não titubeou: agarrou os cabelos do homem bem vestido com uma das mãos, puxando violentamente sua cabeça para trás. Com a outra, cortou-lhe o pescoço de um lado a outro. Um semi-círculo preciso, uma degola cirúrgica, como quando sacrificava frangos no abatedouro. O homem bem vestido levou as mãos ao pescoço, o sangue esguichando aos borbotões, empapando seus belos trajes, tingindo de rubro sua fina e branca camisa de seda. Caiu pesadamente, ainda constringindo o pescoço, numa última e desesperada tentativa de interromper o fluxo, de agarrar-se à vida. Os olhos arregalados, a escancarada boca silenciosa perguntavam a mesma pergunta: por quê?
Salomão ficou ali, parado, observando os derradeiros estertores do desconhecido prestes a conhecer o desconhecido. "Sujeito de sorte". O proprietário do bar há muito havia debandado, em busca de um telefone para chamar a polícia, que logo apareceu. Salomão não reagiu à prisão. Foi algemado e conduzido à Delegacia, onde foi interrogado. Expressão serena, imperturbável, olhos fixos nos do Delegado, disse, em tom baixo:
- A justiça prevaleceu. Olho por olho, dente por dente, fluido por fluido. O infiel estouvado profanou o sagrado ritual com sua atitude aparvalhada, ofendeu o Supremo Ser Alcoólico Aquoso Cáustico, regou a terra com a santa beberagem oriunda dos alambiques divinais. O sacrilégio só poderia ser reparado, a ira do Deus Etílico só poderia ser aplacada com o sacrifício do ímpio. Sinto-me honrado porque Ele me escolheu. Tornei-me o braço da justiça divina, o anjo da morte, o precursor do Messias Ébrio. Desenrolei o tapete vermelho, o tapete de sangue, onde Aquele-Que-Tudo-Sabe-E-Tudo-Bebe caminhará trazendo consigo as boas-novas de dor, morte, sofrimento, vômito e paz. Estou feliz. Cumpri minha missão.
O Delegado fitou o escrivão que fitou o Delegado. A sentença veio fluida, imediata, uníssona:
- Preciso tomar uma.

Carlos Cruz - 28/03/2008

sexta-feira, 21 de março de 2008

O Evangelho de São João Barba de Bode Capítulo I



Olhe.
Pare, olhe, escute.
Sempre olhe para os lados antes de atravessar a via.
O dono do carrão reluzente total flex não merece atropelar você.
O seguro vai cobrir as despesas decorrentes do acidente.
Sua família contratará um advogado.
O advogado vai fazer a engrenagem burocrática funcionar.
Sua família receberá o DPVAT.
O advogado abocanhará, alegremente e com expressão de pesar
os trinta porcento do bolo a que faz jus.
O motorista atropelador ganhará um novo carrão reluzente.
Você não vai ganhar nada, tornar-se-á nada.
Olhe.

Ouça.
Ouça a voz do diabinho verde.
Ele sabe o que diz.
Ele sabe tudo.
Não ouça os crentes, os devotos-autômatos de Cristo-Buda-Confúcio-Maomé.
Ouça o diabinho verde de orelhas pontudas e dentes muito brancos.
Faça o que der na sua telha.
Ainda que cause danos à sua saúde.
Porra, de quem é o corpo?
Foda, foda muito. Refestele-se de carne.
Empanturre-se de carne.
Beba, fume, drogue-se.
Faça o que quiser.
Desde que não prejudique outro.
Ouça.

Cheire.
Sinta os odores do mundo, do sub e do infra-mundo.
Embriague-se de cheiros.
O cheiro do sexo, do perfume barato, do estrume.
Cheire o sovaco, a boceta, o saco.
Cheire o cachorro morto, o marimbondo, o rato.
Cheire a chuva, o esgoto, o mato.
Impregne-se dos olores de vida, morte, coma e sorte.
Aspire a fumaça do pneu queimado.
Queime suas roupas na fogueira santa.
Cozinhe seu cérebro na frigideira de aço inox.
Tempere com salmos, salmonelas e idéias idiotas.
Deixe passar do ponto e coma.
Regue com vinho tinto barato.
Depois, defeque no chão.
Cheire.

Carlos Cruz - 30/01/2008

Tudo o que você queria saber sobre a pia e tinha medo de perguntar




A pia tem um ralo pequeno por onde escoam os recém-nascidos vícios batismais... Mas eles voltam depois em forma de deliciosas, concupiscentes e sinuosas víboras. Vorazes, devoram pênis intrometidos e vulvas recatadas. A moral, espavorida, sempre dá um jeito de debandar e refugiar-se na sacrossanta e úmida gruta da Santa Sé, enquanto serpentes de medusas e cleópatras embatem-se renhidas com leões voadores de pau duro na arena do pecado, do sexo, da morte, da dor e da redenção. Daí, vem a pia, o ralo, o esgoto, o rio do esquecimento. O nada.

Carlos Cruz - 19/03/2008

sábado, 15 de março de 2008

O Piedoso



Furou os olhos com o aguilhão em brasa, pacientemente aquecido na chama do pequeno maçarico. Para os tímpanos, usou longas e finíssimas agulhas de aço inoxidável. Amputou o pênis, o saco escrotal, as mãos, os pés. Deixou a língua por último, gostava de ouvir os gritos. Apontou a reluzente Glock 9 mm para a cabeça da agonizante vítima, premiu o gatilho, uma, duas vezes. Durante alguns minutos, ficou ali, estático, olhando para o cadáver. Suspirou. Era a primeira vez que descumpria uma cláusula contratual. O cliente havia sido enfático: “Quero que o filho da puta sofra, que sangre até morrer.” “Mas que merda! Estarei amolecendo?”, pensou. Precisava, a qualquer custo, preservar sua reputação, adquirida em anos de sacrifício e dedicação à profissão. Seguiu até à casa do cliente, que o recebeu, ansioso: “E aí, está feito? Ele sofreu? Gritou? Implorou por sua vida? Sangrou até morrer? Conte-me tudo, quero detalhes!” Volveu a arma na direção do cliente, um tiro certeiro, à queima-roupa, no centro da testa. Era um paradoxo: matava homens, velhos, mulheres, crianças, mas era absolutamente incapaz de mentir. “Não. Não sangrou até a morte. Matei-o antes. Tive pena.” Saiu da casa. Antes de amassar e jogar fora o folheto entregue pela sorridente menina de saia comprida e cabelos cacheados, leu, uma vez mais, a mensagem nele impressa: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.”

Carlos Cruz – 06/03/08