quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Eterno Retorno



Ano 2536. Episcípedes, na segurança de sua casa-redoma feita de vidro ultra-resistente, observa a chuva ácida. A paisagem lá fora é desoladora: só negrume, só fumaça,só morte. Só. Episcípedes sentia-se aflitivamente só. Tomou outra dose de alcahol, outra cápsula de ilusionithium. Drogas permitidas pelo Estado. Controladas pelo Estado. Estado que controlava os cidadãos. Cidadãos que consumiam as drogas controladas pelo Estado para que não perdessem o controle de si. Episcípedes sentiu o formigamento nas mãos, o suave torpor, a leveza do corpo. As substâncias faziam efeito, cumpriam seu papel no organograma estatal. A paisagem lá fora transmutou-se. O árido tornou-se fértil. O negro tornou-se verde. O morto reviveu. Episcípedes viajou. Para dentro, para longe, para trás.

Ano 1210. Episcípedes era homem. Tinha a cabeça raspada em forma de halo, trajava uma túnica grossa de lã, amarrada por uma corda na cintura, e sandálias. A corda tinha três nós. Os nós tinham nomes. Pobreza, Obediência e Castidade. Ao seu redor, animais, muitos. Parecia que todos os animais da floresta tinham vindo lhe fazer companhia. Episcípedes estava feliz, muito feliz. O estrondo da trovoada fez os animais debandarem. Episcípedes correu atrás deles. Não queria que aquele momento pleno de felicidade terminasse. Chocou-se contra algo invisível. Uma barreira invisível. A chuva desabou. Episcípedes, desesperado, viu os animais contorcerem-se, dissolverem-se, transformarem-se em uma pasta de carne fumegante. A relva verde ardia sem fogo. Fumaça. Muita fumaça. O verde tornava-se negro. Episcípedes tateou a esmo a barreira invisível. Encontrou um botão. Premiu. Uma porta invisível abriu-se na parede invisível. Episcípedes transpôs. Saiu. Correu sob a chuva. Gotas ácidas penetrando sua carne. Agulhas de fogo líquido. Queimando. Súbito, seu corpo em brasas planou no ar. Levitou. Braços invisíveis arremessaram-no violentamente contra a madeira. O madeiro. Grossos pregos cravaram-se em suas mãos e pés. Cravos. Coroa de espinhos na cabeça. Estigmas. Gotas ácidas. Queimando. Derretendo. Martirizando o mártir. O homem humano. Super-humano. Não era Episcípedes. Não era Francisco. Era a massa. A massa de carne sem vida. Morto. Estava morto.

Ano 3023. Episcípedes era uma célula nervosa implantada em um chip. Um chip implantado em um andróide. Não sentia. Não pensava. Não amava. Era só uma célula. Só um chip. Só um andróide. Só. Sempre só. Operário na usina de reciclagem de lixo, encontrou, certa vez, uma gravura antiga dentro de um livro antigo: Uma cobra engolindo a própria cauda. Algo dentro de si reagiu. Talvez uma mitocôndria anarquista. Familiaridade. A gravura era familiar. Aquela vaga lembrança foi o foco inicial daquela que ficou conhecida como a "Revolução dos Humanóides". Milhões de andróides foram neutralizados. Episcípedes, crucificado na cruz de metal, exposto durante meses como um lembrete. Depois, desmembrado, esquartejado e, por fim, dissolvido em ácido. Era o fim de outro ciclo. Outros viriam. A cobra engoliria o próprio rabo. Sempre.

Carlos Cruz - 20/11/2007


Baseado na História



Farto das missivas repreensivas do pai, o jovem fidalgo reuniu os amigos e seguiu para as margens do rio, a fim de abastecer-se da tal erva-do-diabo. Os fumos miraculosos certamente o fariam esquecer a categórica advertência do monarca: "Se acaso não abandonares essa vida de desregramentos e licenciosidades, despojo-te do trono antes mesmo de nele assentares." O encontro com a tropa imperial, bando de desmancha-prazeres, emissários de novas reprimendas paternas, foi, para o infante, a gota d'água. Espada em riste, olhar fulminante, regurgitou sua fúria, rompeu os grilhões, soltou o grito de liberdade há muito sufocado na garganta:
- Independência ou morte!
Próximo a eles, o traficante, disfarçado de camponês andrajoso, esgueirava-se furtivamente, saindo de cena, de fininho.

Carlos Cruz - 17/10/2007