quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Pastor João



Convicto da missão que o próprio Deus lhe confiara, Pastor João apenas observava, compadecido, os policiais que o conduziam. Acusavam-no de estelionato, formação de quadrilha, associação para fins de tráfico, corrupção de menores, mediação para servir à lascívia de outrem, a lista era extensa. Quanta babaquice. Afinal, o que era a lei dos homens se comparada à Lei do Todo-Poderoso? Jamais esqueceria a noite em que Ele aparecera, na forma de um cabeçudo alienígena verde-oliva, grandes olhos flamejantes, dentro da fulgurante bola de fogo amarela, dizendo, com aquela voz tonitruante, as palavras que mudariam para sempre a vida de João:
- João! Esqueçe tudo o que aprendeste sobre bem, mal, certo, errado, pecado, Céu, Inferno e Purgatório. Queima tua Bíblia. São mentiras, invencionices de Lúcifer, visando privar os homens dos prazeres da vida e levá-los à perdição. Poucos conhecem o caminho da verdade. Mostrar-to-ei. Ouve. Procura um livro chamado Código Penal. Segue as instruções que ali estão. Pratica o que o livro chama de crimes. Assim agindo, alcançarás a felicidade na Terra e a salvação no Céu.
Lembrou-se de sua ingênua audácia, ao questionar Aquele Que Tudo Sabe:
- Mas... Senhor... Tornar-me-ei um criminoso?
- Serás um servo de Deus. Vai, João, combate o bom combate. Não temas, sempre estarei contigo. - respondeu o Onipotente, desaparecendo numa nuvem de fumaça que provocava ardência nos olhos e nas narinas.
Fitou novamente os policiais, as algemas comprimindo dolorosamente seus pulsos. "Eles não sabem o que fazem" - pensou.

Polinter, Base Neves. Acautelado, à disposição do MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da Capital. Os presos, todos crentes, conheciam-no e o respeitavam. Não é todo dia que viam uma celebridade do mundo do crime, inda mais um homem de Deus. Ministrava fervorosos cultos, ensinando às ovelhas o verdadeiro caminho do Céu, que todos conheciam de uma à outra ponta e muitos já o haviam trilhado várias vezes. Conquistou dezenas de almas no xadrez, deixando os antigos pastores a catequizar as paredes. Tudo transcorria bem na Seara do Pastor João, até aquela fatídica noite de 25 de agosto, a noite do eclipse lunar...
Todos dormiam na cela, à exceção de Pastor João, que meditava sobre os intrincados e tortuosos caminhos do Senhor. Viu o pequeno facho de luz surgir na parede, bem em frente ao poster da Viviane Araújo. Recordou-se de imediato. Caiu de joelhos.
- Senhor! Finalmente vieste me socorrer!
O diminuto clarão foi aumentando de tamanho, adquirindo a forma do Deus marciano. Pastor João alternava choro e riso, em seu rosto uma expressão desvairada. Tremeu quando ouviu a voz de trovão:
- João, meu servo, regozijo-me contigo. Vejo que és valoroso. Mesmo diante de tantas e tamanhas adversidades, não titubeaste nem arrefeceste. És valente e constante. Mereces teu galardão. Queres vislumbrar o que te aguarda?
- Senhor, não sou merecedor. Fiz apenas o que me ordenaste. Combati o bom combate, visando ao cumprimento de minha missão. Se achares que sou digno, mostra-me minha recompensa.
O ser verde luminoso, então, soltou uma gargalhada estereofônica, ao mesmo tempo em que suas formas foram se transformando: a pele verde tornou-se rubra, os olhos de fogo enegreceram, surgiram chifres, cauda e cascos de bode. O cheiro de enxofre era quase insuportável. Pastor João contemplava, boquiaberto, o ser venerado que transformara sua vida, transmutar-se na figura do Príncipe das Profundezas, o Tinhoso, o Cão do Pé Preto! Aturdido, viu, na parede, imagens de um filme de terror, saídas de um projetor invisível, cujo protagonista era ele próprio! Viu-se mergulhado em um lago de magma, destrinchado e devorado por demônios alados, suas vísceras lançadas aos cães; viu jacas gigantescas serem enfiadas em seu ânus, viu seu corpo ser corroído por urina ácida lançada por íncubus horrendos; viu sofrimento, muito sofrimento.Súbito, a tela sumiu, o Diabo riu zombeteiro. Olhou para o aturdido Pastor João e falou:
- Te vejo no Inferno, babaca!
Dito isto, desapareceu numa nuvem de fumaça com cheiro de enxofre. Pastor João ficou ali ajoelhado, imóvel, durante vários minutos. Alguém sacudiu seu ombro.
- Ô pastor! Algum problema?
Era Alcebíades, preso por haver assassinado a mulher e a sogra. Após alguns minutos, Pastor João fitou o rosto perscrutador de Alcebíades e ordenou:
- Alcebíades, coma meu cu!
- O quê? Tá doido, pastor?
- Você quer padecer no lago de fogo e enxofre do Inferno? Faça o que estou mandando, coma meu cu!
- Tá legal, pastor. Se é pra me livrar do Inferno, vamulá.
Os gemidos acordaram os demais presos. Pastor João mandou que todos o comessem, sob pena de arder no fogo do Inferno. Temerosos de perder a alma, um a um, ininterruptamente, os presos sodomizaram-no durante várias horas.
Dias depois, Pastor João foi transferido para o manicômio judiciário, onde passa os dias olhando para as lâmpadas do teto, babando e balbuciando:
- Deus é verde, o Diabo é vermelho, Deus é o Diabo verde, Deus é o Diabo. Vinde a mim e meterei meu ferro em brasa no vosso cu. Deus é o Diabo...
Após a internação de Pastor João, os demais ministros do Evangelho, dantes rechaçados, voltaram normalmente às suas agradáveis e rentáveis atividades na cadeia.

Carlos Cruz - 27/08/2007

domingo, 17 de agosto de 2008

Ensaio Sobre a Mina




Belos e distorcidos acordes, extraídos com esmero e paixão da negra Fender Stratocaster, rompem o silêncio daquela ensolarada manhã em Kandahar. A cozinha entra em cena. O baixista golpeia as cordas de seu instrumento, o som grave e sujo une-se ao da guitarra em peculiar e perfeita harmonia. Chega o "gran momento". O baterista ergue as baquetas, fita os amigos, sorri e desce os braços com toda a força.

Inferno. Ala da facção muçulmana. O barulhento death metal reverbera nas paredes da enorme gruta, abafando a cantilena, as lamentações e os gemidos.
- Não falei que a "Demônios de Allah" um dia ia estourar?
- Yeah! Inshallah!

Carlos Cruz - 17/08/2008

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Submergente



Estudante, operário, comerciante, marchant, empresário. Após a falência, estelionatário, escroque, rufião, traficante, ladrão.
Entrou no casarão. Como uma mansão daquelas não tinha alarme, vigia, sistema de câmeras, nem ao menos um cachorro? Portas, cadeados, grades reforçadas eram moleza. Passou os olhos pela grande sala. A dona da casa, indubitavelmente, tinha bom gosto, uma bela coleção de obras de arte. Mas não estava ali para furtar, não hoje. Andou pela sala, vasculhando-a de uma ponta a outra. Finalmente encontrou, num canto escuro sobre uma mesinha de madeira no estilo art nouveau, o objeto desejado: o vaso de porcelana feito no século 14, no período Hongwu da dinastia Ming. Segurou com todo cuidado, retirou da mesa com mais cuidado, depositou-o no chão com mais cuidado ainda. Desafivelou o cinto, arriou a calça, vergou o corpo, cautelosamente, até suas nádegas tocarem a borda do raro e caro artefato. Necessário não foi forçar muito para fazer aquilo que, forçosamente, tinha de fazer, dada a eficiência bombástica da buchada de bode consumida no almoço. A merda esguichou, veemente e impetuosa, no interior do vaso. Pronto. Estava feito. Se a cigana estava certa, sua vida começaria a mudar ainda naquela noite. Dirigiu-se ao banheiro, onde limpou-se com fino e macio papel higiênico de tripla camada. Saiu da casa, satisfeito, preparado para sua nova vida de braço dado com a fortuna, novamente. De novo a luz dos holofotes, de novo seu nome aclamado pelo high society, de novo seu rosto estampado nas colunas sociais dos grandes jornais. Ao cruzar o portão, uma forte luz no rosto fê-lo emergir de seus devaneios.
- Polícia! Você está preso, Gastão Hepaminondas!
Na manhã do dia seguinte, pediu emprestado o jornal do carcereiro, sua foto estampada na primeira página. "É." - pensou - "mesmo sendo uma gradessíssima filha da puta, a cigana estava certa."

Carlos Cruz - 01/08/2008

O Último dos Moicanos



Assistiu, com tremendo desprazer, seus semelhantes rasparem os cabelos e tatuarem suásticas nos braços, nas costas, nos tórax, nas nádegas e nas testas.
Agora, sozinho na metrópole, diferente, perseguido e acuado, vê-se em um beco sem saída, à mercê da salivante gangue de emos que aproxima-se ameaçadoramente. Sem vislumbrar melhor desfecho para o crucial impasse existencial, decide praticar o "do it yourself", antigo lema do outrora glorioso movimento punk. Espada em riste, impiedosa e impetuosamente, ataca. Sodomiza um, dois, três, quatro. O suor escorre copioso testa abaixo, provocando ardência nos olhos; a camisa, com a gravura de Sid Vicious, empapa. Exausto, espada vacilante, percebe a iminência do amargo fim. Os emos são muitos, jovens como o movimento do qual são sectários, vorazes, insaciáveis, multiplicam-se como baratas. Quando tudo parece perdido, eis que surge a salvação, ela é careca, musculosa, tatuada e bastante numerosa. Por deliberação unânime em assembléia, os carecas decidiram acrescentar à sua negra lista, na qual já constavam negros, judeus, orientais e nordestinos, os integrantes do movimento Emo. Caíram sobre eles aos socos ingleses, tapas e pontapés. Ao final do rápido e fulminante ataque, a praça era um mar de corpos maquiados, franjas, cabelos coloridos e roupas pretas espalhafatosas. O combate terminara com baixas maciças em apenas um dos polos.
Minutos depois, vieram os judeus ortodoxos que dizimiram os skins. Depois, apareceram os palestinos que destroçaram os semitas. O moicano virou crente de terno, gravata, Bíblia e cabelo moicano, que virou moda.
Alheio a tudo, o mundo prosseguiu seus movimentos ao redor do sol e de si mesmo, azul, redondo e careca como uma bola de bilhar.

Carlos Cruz - 04/08/2008

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O Patinho Feio



Resignado, tolerou, durante anos, as chacotas dos irmãos, a rejeição dos pais, os olhares de viés, comentários abafados com a mão na boca e risinhos de escárnio dos vizinhos. Preterido do pueril convívio social, escorraçado pelos de sua idade, descobrira, desde muito cedo, o fascinante mundo dos livros e da música erudita. Devorava livros e músicas, seu apetite cultural era diretamente proporcional à sua infelicidade.
Certo dia, caiu-lhe nas mãos um sebento volume de um tal Hans Christian Andersen. Não gostava de contos infantis, mas mesmo assim leu. Leu e sorriu. Pela primeira vez em sua vida, gargalhou alto, leve e solto. Lá estava sua história e seu futuro, traçados pela pena mágica do mágico escritor. Isso explicava sua predileção pelO Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. Eufórico, saiu para passear e admirar a natureza. Tudo parecia haver adquirido uma coloração especial, matizes especiais, sons especiais. O mundo estava mais bonito. Cumprimentou todos por quem passou. Atônitos, fitavam-no e comentavam, entredentes: "Terá bebido? Estará louco? Cheirou loló?". "La vita è bella." - pensava Agnelo, imerso até os pêlos em seu êxtase particular.
Entretanto, como outrora dissera um gaiato qualquer, "tudo que é bom dura pouco." Treze minutos e vinte e três segundos. Essa a exata duração do interregno feliz de Agnelo. Vinha chegando a segunda descoberta do dia. Era branca, com pêlos só no alto do cocuruto, bípede, de bermuda azul, tênis Ortopé, camisa de malha branca com estampa do Pica-pau, maior que Agnelo porém menor que o outro da mesma espécie de quem segurava uma das mãos e para quem gritou:
- Olha, pai! Um ornitorrinco!
- Jesus! Que bicho feio! Não chegue perto, filho. Ele pode morder!

Carlos Cruz - 01/08/2008