domingo, 18 de dezembro de 2011

mundo perro - final





dolorido, desperto. deparo um mar de branco hospitalar. sinto-me um náufrago em minha solidão. a felicidade debandou ou viajou em férias ao camboja. quem sabe virou cinzas, causticada pelos pássaros de fogo. as lembranças vêm em pequenas doses, ao sabor do latejar do meu ombro. santiago aparece. segundo ele, surtei de alto a baixo, de frente e de costas, por dentro e por fora. em suma: endoideci geral e de vez naquela vez. serei avaliado e muitíssimo provavelmente - creio ainda não ter referido a simpatia de santiago pelos superlativos absolutos sintéticos - afastado pela psiquiatria; readaptado, talvez. felizmente - disse-me ele - não matou nem feriu ninguém. o computador do plantão, porém - coitado! - já era. virou uma peneira. trinta e um tiros é tiro pra caralho! você tava mesmo com raiva do pobre. volvi a cabeça e de soslaio, sorri esboçado e satisfeito como o jogador que vence a partida. missão cumprida. eu destruíra a caixa de pandora e salvara o mundo. glória a hesíodo! e a mim, claro. de preferência, acompanhada de uma medalha e uma promoção por bravura. afinal, a escassez de heróis demanda lauréis aos intimoratos necessitados de um cascalho a mais pra gastar com pornografias culturais e vícios legais. porque sou - convém jamais esquecer, sequer por um (seria ótimo?) átimo: um homem da Lei! VAGABUNDOS DE TODO O ESTADO, DO TIPO CORRIQUEIRO OU NEO-CONVERTIDOS CAOZEIROS, TREMEI! investigador arquimedes, o martelo da justiça, o flagelo dos párias, ainda está no páreo! a trovoada seguida do matraquear do granizo sobre o telhado galvanizado deu o tom maldito propício ao fechamento da diatribe. o céu desabava sobre as cacholas dos humanos, contribuintes e não. uma exaltação brotada na planta dos pés - pra não dizer frenesi, sempre achei um termo meio gay - escalou, deliciosamente implacável - nada adiantou, ficou gay do mesmo jeito - meu corpo e descambou e explodiu no cérebro. olhei a cidade enevoada e fluida e tive a certeza da inutilidade da minha existência. por isso e somente por isso, pela primeira vez, senti-me parte do todo social, mais idiota do que nunca. tive ímpetos de gargalhar.


e gargalhei.



Carlos Cruz - 18/12/2011

mundo perro - parte 6




giroflex vermelhos girando e girando e girando. sem parar. vermelho. sangue. vernelho-sangue. um sujeito negro chafurdando no seu próprio sangue no piso amarelo. pms com testas franzidas, fardas cinzas engomadas, olhos injetados. sangue. olhos de sangue. sangue nos olhos. ao balcão, uma mulata chora. olhos entalhados no fundo de olheiras negras chovem em conta-gotas. lágrimas ininterruptas, fartas. sangue. lágrimas de sangue. farto, de novo novamente mais uma vez. estou farto e trêmulo. insano, enfim, estremeço. atirar! quero muito. necessito atirar! e atiro. descarrego minha pistola. recarrego, atiro de novo e de novo e de novo. alvoroço. pandemônio. pessoas ao chão. pms e civis e santiago se entreolhando, atônitos. em meio ao caos, transtornadamente tresloucado, sinto o calor no ombro somente quando a munição acaba. fumaça, neblina e cheiro de pólvora. o fluido vermelho que jorra, a cântaros, torna-se uma mancha crescente no piso amarelo. concomitante, choro e rio. babo também, acho. ora penso estar louco e sou tomado por um sentimento que acredito ser a alardeada, almejada felicidade; ora sobrevêm a decepção a partir da constatação de que ainda concateno pensamentos. dizem que os loucos não pensam. penso, logo, raciocino, logo, ajo em conformidade com a razão. quem disse isso? há estudos científicos comprobatórios de tal assertiva? ou serão meras quimeras dos dementes? não tenho respostas nem as desejo, quero apenas prolongar essa sensação de purificação libertária, esse júbilo remissivo que me enche de paz e me dá ganas de morder os dedos do pé e cantar as músicas do Benito di Paula. justo nesse instante - por que tão fugaz? - vejo a luz. vá para a luz, caroline! feliz, sim!, imirjo na lagoa rubra iluminada por pássaros de fogo emissários do hades. apago a luz e acendo um sorriso sem dentes no canto da boca. desapegado e telúrico, etéreo e com pés plúmbeos, não ascendo. a vida, afinal, não é assim tão ruim.


mundo perro - parte 5




paradoxal a ponto de reluzir e ainda assim - por muito pouco - quase não existir, modorrenta, turva, frenética, trágica, bela (como deve ser, a despeito dos implantes e peitos de jabulanis e ferraris e perfumes importados que fazem espirrar), a deambulação emitiu seu derradeiro estertor, descambou onde deveria - quiçá - o inevitável dever desgraçado e a monocórdia ladainha incessante: só pode nunca poder nada. se foder-se! de verde, de amarelo, de azul, de branco. de preto & branco. a vascaína tá dobrando a esquina. vaza, vagabundo! desinfle até virar galho de goiabeira. vou e volto sem sair do lugar. será a tal metamorfose? ansiada, dentre outros malucos, por literatos?, musicistas?, vates?. ah! vá te danar! ou vai se! pra não eriçar tão-só um gramático braço. não dá pra ser metamorfose, tampouco ambulante. os GM zunem cassetetes na cacunda e ninguém tá aí de plantão louco pra sofrer. só os S&M de araque e os leitores do caderno B. se uso avanço, ninfas avançam; se axe, exalo axiomas. piadinhas infames. adoro. e tudo isso somente pra dizer que cheguei na DP. comichão nos dedos. vontade de atirar da porra! tem nome isso, certamente tem. síndrome do desejo irrefreável e irresistível de atirar com armas de fogo (há atiradeiras ou bodoques no Sítio do Pica Pau Amarelo, nunca é demais relembrar, mesmo que os garotos informáticos e x-bóxticos desconheçam). deve existir. outra psicossomose bacana que consta ou deveria constar do vade mecum da psiquiatria: dependência de dupla penetração na delegacia de polícia. a merda é que só mulher feia e viado iam sofrer dessa porcaria. bosta!

gravura: Butcher, Baker etc by Dominic Marco

sábado, 3 de dezembro de 2011

mundo perro - parte 4



a noite estava ainda mais fria. o asfalto úmido indicava chuva recente. se acreditasse que possuía alma, diria que ela estava tão fria como o clima noturno. minha cabeça acompanhava o fluxo de meus pensamentos que giravam alucinados por tempos, pensadores, bebedeiras e bucetas distantes ou nem tanto. como sempre acontecia quando bebia, tinha vontade de atirar, mas o homem-da-lei sofreava o desejo. súbito, surgiu um motorista apressado na via, bastante comum a essas horas avançadas, decerto movido e motivado pelo álcool e/ou outros entorpecentes lícitos e ilícitos. quando emparelhou comigo, reles transeunte ébrio, passou propositalmente sobre uma poça. tomei um banho de água suja e gélida. apesar da obscuridade, pude ver o sorriso do sem-mãe. FILHO DA PUTA DESGRAÇADO! saquei a arma, mirei a traseira do auto, um Jaguar XKR conversível e atirei. para o alto. por pouco a razão não perde a peleja para o coquetel de raiva e vodka. por um triz. imaginei as manchetes no dia seguinte, primeira página do meia hora e do dia: POLICIAL BÊBADO ATIRA E MATA MOTORISTA. O investigador da Polícia Civil Arquimedes Sampaio, após sair da boate Savana's, conhecido inferninho de Copacabana, ponto de encontro de prostitutas, travestis e criminosos, assassinou covardemente o estudante Felipe Stonnenberger de Alvarenga na madrugada de ontem... não. definitivamente não. não vou dar mole pra esses putos. que crucifiquem outros pra vender seus tablóides de merda. parte do porre havia passado. encharcado, tiritava. novamente pensei na minha condição miserável. sim, era isso que eu era, um miserável, um merda. a melancolia sobreveio com força total, a boca medonha cheia de dentes afiados e alaranjados devorando-me pela cabeça. senti seu hálito nauseabundo, sua saliva gosmenta melando meus cabelos e meu ânimo de viver. um tiro na cabeça, morte rápida e indolor. indolor? será? ninguém tinha voltado da sepultura para lhe contar se realmente aquele átimo derradeiro e crucial doía ou não. acho que deve ser uma dor lancinante, a maior dor que existe no universo. depois, acabou.