sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sub ou Sobe e Desce ou O Insubstituível, A Caveira Sorridente e A Sôfrega e Lenta Degustação da Iguaria Gélida


Mangueira. Pico do morro. Pico do mundo. "Tem pico?" "Não. Preto e branco só. Vai?" Traficantes traficam. Crianças-descalças-de-bermudas-coloridas-sem-camisa soltam pipa. O sol escalda. Corpos enegrecidos ardem nos microondas movidos a borracha e gasolina, exalam cheiro de churrasco. Homens reunidos em toscos botecos improvisados bebem sofregamente e riem desdentadamente.  Cantarolantes mulheres morenas estendem roupas no varal. Ladram vira-latas com pelada. Mais adiante, outras crianças jogam pelada. No barraco do Sobral, Elvira, pelada e suada, estendida sobre a colcha bordada com o escudo do Flamengo, sorve, lânguida, os fumos do baseado. Passa o bagulho para Tião Boca Quente, que dá uma bola, alegremente.
- Porra, Vivi, não sei o que é melhor, foder você ou fumar um depois.
- Que porra é essa, Tião? Quer dizer que você prefere fumar um bagulho do que me foder? Você acabou de acabar comigo agora. Sou menos gostosa do que um bagulho. Puta que o pariu!
- Que que isso, potranca. Cê sabe que você é especial, a minha cadelinha particular.
- Sua cadela particular o cacete! Pertenço ao Sobral. Com você é só sexo. Eu pego você.
- Pega eu porra nenhuma! Esse negócio de mulher dizer que pega homem é uma babaquice modernosa. Eu sou o Tião Cabuloso, sou bonito, gostoso e maldoso. Ninguém se mete comigo. Nem o Sobral.
- Tá legal. Você é muito mal... Ih, cacete! Lá vem o Sobral!
- Ai, meu Jesus Cristinho!
          Tião salta da cama, abre as portas do guarda-roupa abarrotado, tentando, desesperadamente, entrar.
- Hahahahaha! Você é um covardão. O Sobral, a essa hora, deve estar rindo à toa. Hoje ele vai ser promovido de empacotador a caixa do supermercado.
- Porra, não faz mais isso não. Quase me mata de susto.
- Ah, tadinho... Ficou assustadinho, foi? O coração tá batendo rápido, tá? Vem cá que vou fazer ele bater mais rápido ainda.
          Sexo.

- Seu Sobral, pode vir à minha sala um minuto? - a cara do gerente não era nada boa.
- Claro. "Babaca. Nunca gostou de mim. Se fudeu, vai ter que engolir minha promoção. Vai ter que ME engolir. Que sorte o dono dessa bosta ter ido com a minha cara..."
- Por favor, Seu Sobral, encoste a porta e sente-se... Seu Sobral, há quanto tempo o senhor trabalha conosco?
- Doze anos.
- O senhor gosta de trabalhar aqui?
- Sim, gosto muito. "Porra! Tem que ter interrogatório? Por que esse filho da puta não diz logo que fui promovido?"
- O senhor sabe das dificuldades pelas quais a empresa vem passando?
- Hã?... Dificuldades?... Não. Sei não.
- O senhor sabia, Seu Sobral, que todo mês a empresa promove uma reunião aberta à participação de todos os funcionários, para tratar de assuntos relativos à empresa?
- ... É... Já ouvi falar.
- O senhor sabe ler, Seu Sobral?
- Sei, sim senhor.
- O senhor costuma olhar o quadro de avisos, Seu Sobral?
- Às vezes, quando dá tempo.
- Costumamos afixar o memorando que informa as datas das reuniões com um mês de antecedência. O senhor já viu algum memorando desses, Seu Sobral?
- Não. - Sobral estava começando a ficar irritado. Aquela mania do gerente de ficar repetindo o nome das pessoas, o tempo todo, era extremamente irritante.
- Bem, Seu Sobral, tentarei ser o mais direto e objetivo possível.
- Claro. "Ah, tá de sacanagem!"
- A nossa empresa, Seu Sobral, está no mercado há mais de cinqüenta anos e sempre foi uma das líderes em nosso segmento. Nossa filosofia de privilegiar o cliente, primando pelo bom atendimento, embasados na máxima que reza, acertadamente, que o cliente tem sempre razão, elevou-nos a um patamar superior com relação às concorrentes. Estamos sempre preocupados em criar meios que façam o cliente sair de nossa loja com vontade de voltar. É nosso diferencial: inovar, idealizar e implementar. Atrair o cliente, sempre, até o mais recalcitrante. E com isso crescer. Idéias, Seu Sobral. As idéias sempre agregam valor ao nosso negócio.
- Sei... "Caralho. Sempre, sempre, sempre... Ele não disse que ia ser direto?"
- O senhor, Seu Sobral, com sua atitude indiferente, jamais participando das reuniões, demonstrando total desinteresse pela empresa, tornou-se um perigo para o futuro de nosso negócio.
- Perigo? Como assim? Eu sou da paz.
- O senhor não entendeu, Seu Sobral. Os funcionários são vistos pela empresa como colaboradores e devem se portar como tal, para o bem de todos. Se todos se engajarem no objetivo de ajudar a empresa a crescer, ela cresce e todos são beneficiados. O senhor, Seu Sobral, não teve um aumento salarial no mês passado?
- Tive. Seis reais de aumento. "Filho da puta!"
- Viu só? Isso foi fruto do esforço de todos pelo bem da empresa. Mas há aí uma injustiça: o senhor teve um aumento salarial em virtude do esforço alheio. O senhor, Seu Sobral, em nada contribuiu para isso.
- Como não contribuí? Não chego atrasado, nunca faltei, faço meu serviço direito. - a irritação recrudescia perigosamente.
- Mas não faz nada além disso, Seu Sobral. A empresa não quer esse tipo de funcionário. Seu Sobral, lamentavelmente fui incumbido de lhe dizer que o senhor não integra mais nosso quadro de funcionários.
- O quê? Como é? - a irritação deu lugar à confusão.
- O senhor está demitido, Seu Sobral. Passe no departamento de pessoal para assinar a rescisão. A secretária lhe informará sobre o valor que tem a receber.
- Mas vocês não podem me demitir! Trabalho aqui há doze anos! Sou o funcionário mais antigo! Preciso desse emprego! Tenho família pra sustentar!
- Seu Sobral, não torne as coisas mais difíceis. Saia, por favor. - o gerente abriu a porta.

          Sobral não foi ao departamento de pessoal. Seguiu para o morro, precisamente ao barraco de Tonho Caolho, o gerente do tráfico local. Antes de entrar foi abordado pelo soldado de chinelos havaianas, bermudão e camisa do Flamengo, com um AR-15 pendurado no ombro. A bandoleira parecia grande demais, o cano da arma quase encostava no chão.
- O que tu quer aqui, Seu Sobral? - o menino tinha sido vizinho de Sobral, mudara-se para um barraco melhor depois que começara a trabalhar no tráfico.
- Quero falar com o Caolho.
- E o que tu quer com ele?
- Comprar uma arma.
- E pra que tu quer uma arma?
- Coisa minha.
- Aí, se tu quiser eu tenho uma 9. Tá novinha, olha aqui. - tirou a pistola da cintura, uma Glock 9 mm, entregou a Sobral.
- Quanto você quer na arma?
- Olha, se fosse pra outro, eu ia pedir mais, mas como é pra tu que é sangue, vou fazer um preço legal. Me dá trezentos e tá tudo certo.
- Segura aí. - Sobral pagou. Havia recebido seu pagamento no dia anterior. Aquele dinheiro seria para fazer compras no mercado e pagar a farmácia. Seria.
- Também preciso de algemas.
- Vai brincar de polícia, tio?
- Não. Vou brincar de juiz.
- Ah, tá. Tenho aqui uma que roubei de um verme que quebrei.
- Quanto é?
- Né nada não, tio. Tenho outras.
- Valeu.
- Já é... Olha lá o que tu vai fazer com isso, hein, tio?

          Silveira olhou o relógio. "Opa! Hora do almoço." Nem precisava conferir as horas, seu estômago era tão metódico quanto o próprio Silveira, cuja alcunha, pronunciada entredentes pelos funcionários do supermercado, sempre que ele passava com sua costumeira expressão de fastidiosa insatisfação, era "O Redondo", uma claramente irônica alusão à sua obesidade combinada com sua mecânica e britânica pontualidade. Trancou a porta de seu escritório; como de hábito, girou a maçaneta três vezes para conferir. Depois, aproximou-se de Joana, a fiscal de caixa, dizendo-lhe as mesmas palavras que, invariavelmente e há mais de três anos, dizia todos os dias: "Joana, vou almoçar. Se tiver algum problema que não consiga resolver, me ligue. Você tem meu número?" A fiscal repetiu a resposta de sempre: "Tenho. Bom apetite."  O gerente caminhou até o estacionamento, entrou no carro, introduziu a chave na ignição. Antes de acionar a partida, sentiu algo frio em sua têmpora e ouviu uma voz grave e nervosa: "Não grite, não faça nenhum movimento brusco, não seja burro se não quiser morrer aqui mesmo. Sem sair do carro, vá para o banco do carona, bem devagar." Era uma pistola. Era Sobral. Era Sobral com cara de mau apontando-lhe uma pistola e ditando-lhe ordens. Trêmulo, obedeceu. Sobral entrou no automóvel, colocou algo no banco traseiro e, com a arma apontada para a cabeça de Silveira, passou-lhe as algemas. "Coloque no braço, bem devagar." Assim fez. Sobral colocou a outra, comprimindo ambas. "Tá muito apertado!" "Cala a boca, porra! Quem te autorizou a falar? Caralho, por que o banco tá molhado? Você molhou as calças, seu covarde filho da puta?" Sobral deu a partida e manobrou o carro, direcionando-o para a saída. "Não tente nenhuma gracinha senão te encho de bala. Não tenho mais nada a perder." O trânsito, àquela hora do dia, estava bastante intenso. Silveira permaneceu calado até acessarem a Estrada do Joá. "Para onde você está me levando?" "Para sua casa." "O que você quer na minha casa, Seu Sobral? A bronca do senhor é comigo, deixe minha família em p..." O bofetão impediu a conclusão da frase, um filete de sangue escorreu do nariz de Silveira, passou por seus lábios e gotejou na camisa branca de seda. "Olha o que você fez! Não mandei calar a porra da boca, caralho!? Dá um jeito de limpar essa sujeira! Vou repetir: se algum polícia parar o carro, dou um tiro na sua cabeça. E pára com essa porra de 'Seu Sobral', ô caralho!" Silveira, com dificuldade, retirou o lenço do bolso da camisa, limpou o sangue do rosto. A mancha na camisa não havia como limpar. Trafegaram mais alguns quilômetros, em silêncio. À certa altura, Sobral parou o carro às margens da via, em um local onde não podiam ser vistos pelos demais motoristas. Desligou o motor, retirou a chave da ignição. Estavam à beira de um despenhadeiro. O sol de meio-dia refletindo seus raios na água azul do mar proporcionava um exuberante e ofuscante espetáculo. Mas Sobral não estava ali para admirar as belezas naturais do local. Tinha uma tarefa a cumprir. Sempre apontando a arma, saiu do automóvel e ordenou: "passe para o banco do motorista!". Silveira, antevendo o pior, demorou a atender à ordem. "Anda, porra! Não tenho o dia inteiro!" O gerente, suando em bicas, volveu o corpo para o assento esquerdo. Sobral tirou algo do bolso da calça, entregando a Silveira. Um tubo de cola Super Bonder! "Agora, tire a tampa e passe nas mãos. Nas duas!" "Olha, Seu Sobral, por favor... Sei que fui duro com o senhor... Mas não é nada pessoal, o dono da empresa mandou enxugar o quadro de funcionários... Ordens são ordens, eu tinha de cumprí-las..." "Isso! Ordens são ordens! Então cumpre a minha ordem e besunta as mãos de cola! Anda, porra! Ou prefere levar um pipoco na cabeça?" Silveira, chorando copiosamente, passou a cola nas mãos. Sobral retirou mais dois frascos do bolso. "Toma! Passa mais!" O gerente esvaziou os tubos. "Agora, agarra o volante, segura bem firme!" "Não faça isso, Seu Sobral... Por favor, eu imploro! Tenho família!" "Ah, você tem família, seu filho da puta? Por acaso você se importou quando eu disse a mesma coisa lá no seu escritório? Não! Você cagou para mim! Cagou para minha família! Como foi que você disse? Ah, sim: 'Seu Sobral, não torne as coisas mais difíceis'. Segura a porra do volante!" - brandiu a arma perigosamente. Silveira apertou o volante com força, o rosto banhado em lágrimas. Sobral aguardou alguns minutos, contornou o veículo, abriu a porta do carona, repôs a chave na ignição e retirou aquilo que havia depositado no banco traseiro: um recipiente de plástico, verde, do tipo usado para guardar combustível, cujo conteúdo despejou no interior do carro. O forte cheiro de gasolina fez as súplicas e o pranto de Silveira aumentarem consideravelmente de intensidade: "Não faça isso, Seu Sobral! Eu devolvo seu emprego! Aumento seu salário! Dou tíquete-alimentação, plano de saúde, vale-transporte!... Uma promoção! Te dou meu cargo! Dou o que o senhor quiser, mas, por favor, não faça isso!" Sobral acendeu o fósforo. "Isso é pelo bem da empresa, 'Seu Silveira'. O senhor, com sua atitude agressiva e pedante, perseguindo e humilhando os funcionários, mesmo os mais dedicados, não agrega valor ao nosso negócio. Lamentavelmente, fui incumbido de lhe dizer que... o senhor está demitido! Nos vemos no inferno, babaca!" "Não! Não! Nãããão!" Sobral lançou o fósforo, as chamas rapidamente espalharam-se pelo interior do automóvel. Silveira gritava horrivelmente. Sobral lançou o galão de combustível, devidamente tapado, no porta-malas e empurrou o carro para o precipício. Ouviu a explosão, mas não ficou para assistir ao show pirotécnico. Célere, correu até a estrada, à margem da qual já alguns curiosos paravam seus veículos e olhavam a fumaça com aquela cara idiota típica dos curiosos. Como sempre acontecera ao longo de sua vida, sua figura franzina, comum, passou despercebida. Aproveitando-se do trânsito lento, embarcou num ônibus com destino à Barra da Tijuca.
- Parece que o acidente foi feio. - comentou o cobrador.
- É. Parece.

          "Sobral!"
- Porra, lá vem você de novo com essa brincadeira idiota. - tapa - rebola essa bunda, vai, minha vadia gostosa. - imobilidade - puta que pariu! Eu já tava quase gozan... Sobral!... - estupefação - eu posso explicar...
- Cala a porra dessa boca! Já matei um hoje, pra matar outro não custa. - mirava o lado esquerdo do tórax de Tião, sem tremer, firme, impassível, sem pensamentos, sem sentimentos.
- Eu não tenho culpa! Ela que quis me dar! Eu sou homem! - lençol urinado.
- Você é um grandessíssimo filho da puta covarde, isso que você é! - enfezou-se Elvira, esquecendo-se, momentaneamente, do perigo maior.
- Já mandei calarem a porra da boca! - silêncio sepulcral.
- Pega a cartela de azulzinha! - para a mulher.
- Hã?
- Pega a caralha da azulzinha na gaveta da cômoda! Aquela merda de remédio que eu tenho que tomar pra foder esse seu cu fedorento, sua vaca!
          Elvira obedece, tremendo de raiva e medo.
- Agora dá três comprimidos pra esse babaca!
- Mas, amor...
- Amor é o caralho, sua vadia do caralho! - o soco atingiu Elvira no pau do nariz; o melado, incontinenti, escorreu pela boca e chegou aos seios da mulher. Entre lágrimas e sangue, entregou as cápsulas na mão de Tião.
- Agora engole, traíra desgraçado!
- Mas, Sobral!
          Pistola na têmpora esquerda, cutucando.
- Engole!
          Os comprimidos descem goela abaixo, com a providencial ajuda do vinho Sangue de Boi no copo de requeijão ao lado da cama.
- Agora, vamos todos ver um filme. - Sobral, sempre apontando a arma para os amantes, segue até a cômoda, pega um DVD, retira o pequeno disco e o introduz no aparelho. Preme o play e a tecla de avançar, aperta o play novamente. Na cena, a atriz Belladonna encara uma trupe de seis negros dotados de enormes estrovengas que revezam nos orifícios da atriz. Sobral senta-se em uma poltrona, de frente para o casal de adúlteros. Tião desvia o olhar para a parede.
- Olha o filme, caralho! - o amásio obedece.
          Trinta minutos depois, Tião não mais sabia o que fazer para disfarçar a ereção. Sobral ergue-se, aproxima-se de Elvira, esbraveja:
- Chupa ele! - tapa na cabeça, segundos de olhar atônito - chupa o pau dele, vagabunda! - novo tapa na cabeça, mais forte.
- Mas, Sobral...
- Caralho! Você é surda ou o quê? Não vou falar de novo: CHUPA A PORRA DO PAU DESSE FILHO DE UMA PUTA!!!
          Elvira cai de boca. Chupa, lambe, chora, lambe, chupa, chora. Malgrado o pavor, o pênis de Tião é todo veias e rigidez, a glande roxa, inchada, parece que explodirá em carne, sangue e sêmen a qualquer momento. Após alguns minutos, Sobral retirou algo do bolso da calça... Um tubo de cola! Puxou Elvira pelos cabelos.
- Ai!
- Agora, esvazia isso no pau dele!
- Mas, Sobral, isso é cola!
- É mesmo? Não brinca. Tem certeza? - tapa na cabeça - passa logo essa porra no pau desse viado antes que amoleça! Rápido ou te dou um tiro na cara, sua piranha! - mais um tapa.
          Elvira descarregou o tubo de cola no pau de Tião, potente príapo condenado pelos efeitos do poderoso medicamento.
- Agora senta em cima dele!
- Mas... - porrada.
- SENTA NA PORRA DO CARALHO, CARALHO!
          Ela sentou. A queimação na vagina, provocada pela super-cola, produziu ainda mais lágrimas. Quanto a Tião, parece que a ação causticante do ultra-adesivo surtiu um efeito impossível: aumentou ainda mais o tesão - o pau latejava nas entranhas de Elvira. "Agora sim! Não gosta de foder, puta? Agora vai ter sempre um pau na boceta. E ainda pode dar o cu e chupar o pau dos outros machos filhos-da-puta. Eu não sou um bom marido? Responde, cadela!" - tapa na cara, mais lágrimas. "É..." Sobral amarrou Elvira em Tião e ambos na cama. Usou panos de prato para amordaçá-los. Quedou-se algum tempo fitando os corpos nus e seus rostos suplicantes. Subiu na cama, posicionou-se sobre eles, flexionou as pernas, encostou o pênis no ânus de Elvira, segurou seu queixo, forçando a cabeça para o lado até seus olhos se encontrarem. Voz gélida, tom baixo, disse: "Eu não sou um bom marido." E cravou-lhe o pênis, de uma só vez, no reto. Meteu, meteu, meteu, sem dó, até ejacular, um gozo raivoso, intenso, remissivo. Ainda arfante, introduziu o cano da arma no ânus de Elvira e atirou. Ela estremeceu e passou a debater-se. Mas não era ela, era Tião que tentava, em vão, livrar-se das amarras, enquanto emitia sons roucos e surdos. Dois tiros na cabeça e cessaram as convulsões. Sobral olhou os cadáveres, o sangue enrubescia o lençol branco e formava uma poça no piso de ardósia. Vomitou. Nauseado, lavou o rosto na pia da cozinha. Retirou do armário alguns frascos de álcool e um tubo de tinta spray. Letra de imprensa, escreveu na parede: "OS ALEMAO TRAIDOR TEM QUE MORRER. CV". Esvaziou os frascos de álcool sobre os cadáveres e os móveis do quarto. Ateou fogo. Foi-se.

          Caju. Cemitério São Francisco Xavier. 09:30 h. Chuva fina. Frio. Melancolia intermitente entrecortada por ruídos de motores e buzinas. Seis pessoas com trajes e óculos negros observam o esquife, confeccionado em madeira de lei e finamente ornamentado com cruzes douradas, ser devorado lentamente pela grande boca escancarada e sem dentes, enquanto ouvem, em silêncio, o salmodiar do clérigo: "O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos..." À cabeça de Sobral, sobreveio a lembrança do encontro, há semanas, com o crente filósofo maluco beleza e o papo do pó. Papo-meio-cabeça, total e interessantemente confuso, que oscilava entre a sina telúrica e inevitável do homem, a insustentável leveza do ser, o paralelo existente entre as grandes corporações multinacionais e os cavaleiros do apocalipse, o mito da caverna de Platão, a comunhão plena com o cosmos, a racionalização esdrúxula do prazer, a viagem astral por meio da cocaína e "do pó vieste, para o pó voltarás". Um baque surdo o fez sair de seus devaneios, a roldana pela qual passava a corda que sustinha uma das extremidades do caixão havia se soltado do eixo. O féretro, de qualidade, resistiu. O coveiro da outra ponta tratou de acelerar a descida. Durante o tradicional arremesso de cal, Sobral viu aproximar-se o Senhor Gustavo Araújo Pompeu de Menezes e Albuquerque, o todo-poderoso fundador e sócio majoritário da Rede Happy Client de Supermercados. Parou à beira da cova, lançou um olhar vazio, inexpressivo, para baixo, para o fundo. Sobral aproximou-se, postando-se ao lado de seu ex-patrão.
- Uma grande perda... (suspiro) Aí está um homem de quem se pode afirmar, sem receio de errar, que amava seu trabalho, um homem cujas idéias, indubitavelmente, agregavam enorme valor à empresa, um homem que não media esforços para atingir as metas propostas, que defendia apaixonadamente os interesses da empresa, um homem que dedicava-se, quase exclusivamente, ao seu trabalho, ainda que tal dedicação demandasse sacrifícios em sua vida pessoal. Enfim, um homem insubstituível. Quem poderia ocupar o lugar de tamanha competência?...
- Qual é mesmo seu nome?
- Sobral.
- Há quantos anos o senhor trabalha conosco, Sobral?
- Doze anos.
- Bem... Tenho uma proposta a lhe fazer... Se preferir, não precisa me dar a resposta agora... Funcionário Sobral, o senhor aceita o cargo de gerente do supermercado?
- Sim, aceito.
- Ótimo. Apresente-se amanhã, pela manhã, no Departamento de Pessoal.
- Sim senhor.
          Sobral foi o último a afastar-se do sepulcro. Antes, precisava dar o adeus derradeiro a Silveira. Correu os olhos em torno para certificar-se de que estava só, voltou as costas, abaixou as calças, abriu e rebolou a bunda cabeluda na direção do túmulo do finado gerente. Nauseabunda e ruidosamente, peidou. Corpo e consciência leves, sorriso nos lábios, ganhou a rua, diluiu-se na turba. Indiferente, insensível e barulhenta, a cidade entardecia.

Carlos Cruz - 10/04/2009