sábado, 3 de novembro de 2018

Crônicas Policiais IV - arma de fogo para quem precisa



há alguns anos, estava eu de plantão na Delegacia, quando para uma viatura da Polícia Militar da qual desembarcam dois policiais, um senhor e uma criança.
o senhor, de aparência muito simples, reunia no rosto banhado em lágrimas a expressão de sofrimento de mil homens torturados.
a criança, um menino de seis anos também de aparência humilde e também chorando a cântaros, estava assustado e confuso.
um dos policiais, que trazia consigo uma espingarda de um cano, calibre 28, muito antiga, gasta e enferrujada, narrou-me o ocorrido: aquele senhor devastado ali na minha frente, um lavrador cuja esposa falecera de um câncer há alguns meses, era o proprietário daquela arma de fogo, herança de seu avô, que na maior parte do tempo ficava guardada sobre o guarda-roupas no seu quarto. vez ou outra, ele a usava para afugentar alguns animais da lavoura.
um belo dia, o filho o vê retirar a arma do local de guarda. após o óbito da matriarca, o pai, ao sair para a lida, deixava as crianças - eram dois meninos, o menor tinha cinco anos de idade - com uma vizinha.
acontece que, naquele dia, a vizinha precisou sair e não pôde ficar com os pequenos. o pai não podia deixar de ir ao trabalho sob pena de perder o emprego, o local era distante e seria bastante difícil levar os moleques na bicicleta. decidiu deixá-los algumas horas a sós, a vizinha retornaria na hora do almoço.
o pai saiu. o menino maior lembrou-se de onde o pai guardava a espingarda e propôs ao irmãozinho brincarem de polícia e ladrão. é claro que o menor topou. arrastaram uma cadeira, sobre a qual colocaram um banco e o mais velho conseguiu alcançar a arma longa.
a brincadeira durou muito pouco. o mais velho, que obviamente era o polícia, matou o bandido com um tiro no peito, direto no coração, o pequeno coração do seu irmão mais novo, seu único irmão. não pulou de júbilo nem gritou de alegria junto ao irmão, a reinação acabara em uma poça de sangue. o menino correu desesperado em busca de ajuda, pois telefone na zona rural é artigo de luxo e a habitação mais próxima ficava a mais de um quilômetro. mas foi vão, o irmão já partira para o planeta dos anjos, em uma nuvem de fumaça com odor de carvão, salitre e enxofre.
estavam ali na minha frente, aguardando meu bater de teclas, aquela família destroçada por balins de chumbo. o Delegado, humanamente, não me mandou autuar o pai em flagrante pela posse ilegal de arma de fogo de uso permitido. enquanto fazia meu trabalho, também fiz o que sempre faço embora não deva fazer: pus-me no lugar do pai. na época meu filho tinha a mesma idade do menino mais velho. na verdade, não me pus no lugar dele porque é impossível absorver, sentir ou mesmo sondar a dor de um pai que perde um filho nessas circunstâncias. ao mesmo tempo em que se arrepende de não haver se desfeito da arma, se autoflagela por sua imprudência em deixá-la carregada, pensa em tirar a própria vida mas sabe que isso não fará o tempo retroceder nem trará de volta o sorriso do seu filho. terminei meu trabalho, pai e filho foram velar a criança morta e eu fiquei com meus pensamentos e meu coração apertado. outro "cavaco do ofício" difícil de suportar e extrair. na folga seguinte, a primeira coisa que fiz ao entrar em casa foi descarregar minha pistola, desmuniciar os carregadores e guardar arma, carregadores e projetis em esconderijos bem distantes um do outro.
quando vejo todo esse iê-iê-iê em torno da revogação ou abrandamento da Lei 10.826/03, o Estatuto do Desarmamento, sempre me lembro dos rostos daquele pai e daquele menino, para sempre destruídos por um tiro de espingarda. armar o cidadão de bem, será mesmo essa a solução para nossos problemas de segurança?
"porra, Cruz, mas esse é um caso em dez mil!"
tá certo, irmão, tá certíssimo. mas, reflitamos juntos: se liberar a posse e/ou porte de arma de fogo pra geral, aumentam também o número de gente armada e gente, você sabe, cada um é diferente, logo, aumentará também o número de imprudentes e os acidentes e os pais e mães e filhos e tias e tios e sobrinhos pranteando seus entes queridos mortos, a matemática é pura, aplicada e má.
cada caso é um caso mas, a meu ver, possuir arma de fogo é uma solução de dois canos alternados: um aponta para o vagabundo, o outro para o cidadão.

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