sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A Estática Estatística da Estética ou O Filme da Sessão da Tarde



"Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade." Eclesiastes 1:2

"El Comienzo". Maria Imaculada da Silva era uma menina bonita, muito bonita, bonita ao ponto de permitir folgadas superadjetivações, linda, a mais costumeira. Desde muito pequena, chamava a atenção de parentes e vizinhos, suscitava elogios de todos aqueles cujo raio de visão alvejasse, ainda que de raspão ou fortuitamente, seu rosto angelical. "Que menina linda!" - era a frase recorrente. Embora integrante da comumente e injustamente desclassificada classe dos não favorecidos, embora seu vestido estampado, florido e andrajoso aparentemente não combinasse com sua estampa, embora suas mãos calejadas de pueril lavradora causassem espanto nos agraciados por seu toque, a menina alheava circunstâncias desfavoráveis e seguia esbanjando beleza e encanto. Seu João e Dona Efigênia, os jubilosos genitores de tão preciosa criança, conquanto analfabetos, modos rústicos e ideais modestos, vislumbraram possibilidades de maiores regozijos, inscreveram a filha no "Miss Guaranapiacaba Mirim", badalado concurso de beleza promovido pela Rádio Guaranapiacabana, a emissora local. Não teve para ninguém, Maria faturou o primeiro lugar, sem esforço, sem agastamento, sem sufoco, sem alvoroço. Era o sopé da montanha, o início da escalada.

"Carpe Diem". Maria adorava ser admirada, elogiada, amada, mormente em virtude do poder magnético e venturoso que parecia advir de sua formosura. Sempre rodeada de pessoas, de sorrisos, pródiga, distribuía felicidade à mancheia e isso a fazia feliz. Prazer maior, somente quando cuidava de seu jardim, que, dado o fato de compor-se tão-só de uma solitária roseira, não correspondia fidedignamente à definição do termo. Todavia, Maria nada via ou sabia ou queria saber quando defrontava sua viçosa roseira de rosas vermelhas. Quedava-se horas a regar, adubar, podar, afofar a terra do canteiro e, sobretudo, a maravilhar-se com o frescor perfumado e escarlate emanado das flores, os belos rebentos de sua protegida e confidente. Sim, confidente. A menina tinha o hábito de falar com a roseira. Certa vez, após sofrer uma reprimenda materna por haver-se empanturrado de rapadura, ela, aos prantos, desabafou: "Você é que é feliz, linda, cheirosa, bem-cuidada, vive apenas para ser admirada, para ser mimada, para ser amada... Ah, como eu queria ser você!"

"Déjà Vu". O tempo passou, Maria ingressou na adolescência, cada ano, cada mês, cada dia mais linda. Aos quinze anos, poder-se-ia referi-la, sem receio de recair em super-estimas, como uma mulher deslumbrante, ainda que, à luz dos dogmas sociais, das leis e seus códigos, mulher não fosse. Estava na plenitude de sua beleza. Não tardou para que um olheiro de uma famosa agência de modelos deitasse seus oportunistas e bem-treinados olhos sobre a bela recém-debutada. Depois vieram, numa célere sucessão, tratamentos de beleza, roupas de marca, capas de revistas, passarelas, holofotes, "flashs" e mais "flashs", carros importados, jóias, fama, fortuna, festas. Mudou-se, junto com os pais, o cachorro e a roseira para uma casa suntuosa localizada num bairro nobre da capital. Cobriu-se e aos seus de todo luxo e conforto que o muito dinheiro podia proporcionar. Instalou-se no melhor quarto, instalou seus genitores no quase melhor quarto, mandou construir uma réplica de sua mansão para abrigar Pelanca, o cão da família. Quanto à roseira de belas rosas vermelhas, ganhou um pomposo jardim com sistema de rega automático, terra rica em húmus, bem drenada e enriquecida com adubo de excelente qualidade, à base de esterco animal, composto orgânico, farinha de ossos e torta de mamona. Ganhou também um jardineiro, mas perdeu a confidente. Imersa até o finamente adornado pescoço em desfiles, ensaios fotográficos, campanhas publicitárias, comerciais televisivos, viagens, "flashs" e outros "flashs", Maria, a "top top model", não tinha mais tempo para colóquios monologuistas vegetativos sem resposta. O tempo passou, a maioridade chegou, a fama aumentou, a conta bancária engordou. A nau Maria, ou melhor, a nau Letícia Müllersen - Maria Imaculada da Silva até era um nome bonito, mas não auspicioso à carreira, segundo seu agente, que apreciava expressões da moda - ia de vento em popa, a todo vapor, rumo à total dominação mundial. As mulheres, novas, velhas, feias, bonitas, magras, gordas, todas todas, queriam vestir as roupas de Maria, maquiar-se como Maria, falar como Maria, andar como Maria, jogar os cabelos como Maria, ser lindas, ricas, famosas, felizes como Maria. Desejavam ser Maria.

"Las Rosas No Hablan". À medida que sua dona ascendia na profissão e obtinha o que impossível parecia, a saber, novos acréscimos de beleza, concomitantemente, e a despeito das reiteradas negligências, esquecimentos por indisponibilidade presencial e outras razões em geral, a roseira florescia a olhos vistos, copiosas e faustuosas rosas vermelho-escarlate, vermelho-afogueado, vermelho-carmesim, vermelho-sangue, vermelho-paixão. Jardineiros, mordomos, cozinheiras, arrumadeiras, visitantes e vendedores de enciclopédias, escorredores, panelas, desentupidores e badulaques afins, detinham-se boquiabertos ante tamanha manifestação de beleza natural. Alguns prosternavam-se, braços aos céus, rendendo louvores ao Criador. Outros choravam, outros riam, outros choravam e riam. A magnificência aliada ao inebriante aroma fazia assomar nos espectadores ao redor e derredor uma espécie de transe místico, um deslumbramento letárgico, agradável, que aflorava sentimentos divinamente humanos. Impassível, alheia a tudo e a todos, majestosa, sagrada e lúbrica, a roseira balançava seus ramos ao sabor dos ventos, refletindo, cobrindo o mundo e os corações com seu edredom de luz, rubro e sereno.

"Mutatis mutandis". Maria não estava feliz. Não era feliz. Não mais. Tamanha incidência diuturna de elogios lha tornaram uma mulher volúvel, um poço de caprichos. Ademais, a diária e inflexível disciplina imposta por seu trabalho a oprimiam. Muito exercício físico, pouco e insosso alimento. Ah, que saudade da rapadura de sua mãe! Afastava, com hercúleo e penoso esforço, tais pensamentos, quando sobrevinham. Atribulada, foi a mais uma festa, onde uma amiga atenciosa apresentou-lhe outra amiga que se tornaria, doravante, sua inseparável melhor amiga. Alva como a neve, detinha as chaves da felicidade, bastava aspirá-la por um canudo e a vida de Maria se enchia novamente de alegrias e bem-estares. É bem verdade que passadas poucas horas de ausência da amiga, Maria quedava-se saudosa e macambúzia, todavia, bastava telefonar que ela voltava, fresca e pura. O ciclo repetiu-se, amiúde, até a noite do excesso excessivo, combinação explosiva de múltiplos mililitros de álcool e altas dosagens de branca amiga pulverizada. Semi-implosão, deus-nos-acuda, corre-corre, ambulância, hospital, coma - sequência imediata. Polícia judiciária, investigação, oitivas, chororô, mentiras-por-uma-boa-causa-própria, retorno do coma, meio-alívio-meio-preocupação-ela-vai-caguetar-a-gente?, sequência-meio. Capas de revista, capas de jornais, noticiários televisivos, programas policiais, tablóides, perdas de contratos, descensão, execração pública, "persona non grata", esparramo na pista, choro, engorda, sequência-bem-próxima-do-fim.

"Sed fiat voluntas tua". Maria estava à beira da falência, moral, financeira e pessoal. Tornara-se o alvo predileto da mídia fanfarrona e das pseudo-amigas farofeiras. Virara motivo de galhofa, uma velha piada sem graça. Alguém que tinha sido mas não mais era. Uma quase-ninguém. Os desfiles acabaram, as festas findaram, os amigos se foram, o telefone emudeceu, o "flash" da câmera queimou, a conta bancária definhou, a cortina se fechou, a fonte secou. Seus pais tentavam, em vão, levantar-lhe o astral, incutir-lhe ânimo, mostrar a ela que a vida prosseguia e, enquanto vida havia, existia também a esperança de dias melhores. Alheia a tudo, ela alheava-se cada vez mais, agonizava em sítio privado. Só pranto e quase nenhuma comida, debilitava-se, murchava, pouco a pouco, como uma bela flor num copo d'água. Lembrou-se de sua velha amiga, a roseira de belas rosas vermelhas que, a despeito dos dissabores de Maria, continuava tão linda e viçosa como sempre fora. Voltaram as conversas monopolares, agora em forma de desabafos, queixumes, lamúrias, predominantemente. Meses depois, o telefone tocou. Sobressaltada, a esquálida Maria arrastou-se até o aparelho. Atendeu. "Alô." "Maria, é você?" A voz inconfundível do agente, o primeiro, o descubridor, o incentivador, fez seu coração disparar. Convidá-la-ia a assinar um novo contrato, recomeçaria de onde parou, teria sua vida de volta? "Sim, sou eu." "Maria, sei que não é um bom momento, mas, sabe como é, os acionistas me cobram e eu não posso arcar com tudo sozinho... Seu problema afetou diretamente as empresas que faziam uso da sua imagem, as vendas despencaram. O mercado da moda é volúvel, qualquer abalo, por menor que seja, e as pessoas deixam de comprar essa ou aquela marca... Bom... Vamos ao que interessa. As empresas se uniram para nos processar, pedem algo em torno de cem milhões de dólares de indenização... Tenho de dividir esse prejuízo com você, afinal, foi você quem causou o estrago. Te dei tantos conselhos, menina... Bem, sua situação financeira está caótica, você e seus amigos festivos cheiraram quase todo o seu patrimônio. Maria... teremos que vender a casa... Maria... você está ouvindo?" Desligou o telefone. Seguiu para o jardim, tirou as sandálias, atravessou a pequena cerca de madeira, postou-se ao lado da roseira. Rosto banhado em lágrimas, fechou as mãos com firmeza ao redor do caule espinhoso, sangue e lágrimas a regar o solo, mirou fixamente a rosa mais bela e desejou, ardentemente, abandonar o mundo dos homens, transmutar-se em vegetal, deixar de ser amiga para se tornar irmã, ser uma roseira. Sentiu um formigamento, primeiro nas plantas dos pés, depois por todo o corpo. Baixou os olhos, fitou os pés. Raízes! Brotavam raízes de seus pés! Por instantes, teve medo. A seguir, contentamento e paz, um sentimento que, de tão intenso, deu-lhe a certeza de haver finalmente encontrado a ansiada felicidade. Suas esqueléticas pernas uniram-se, seus ossudos braços afinaram-se ainda mais, sua pele escureceu, surgiram protuberâncias espinhosas. Sua face, cuja beleza, a despeito das agruras da vida, não se havia perdido, foi-se tornando rubra, surgiram pétalas carnosas e de um vermelho muito vivo. Por fim, transmutação finda, um final e um começo. Sai de cena a bela Maria Imaculada da Silva. Dá lugar à mais linda roseira de uma rosa só que já existira na superfície da Terra. Seu João e Dona Efigênia rocuraram a filha por alguns meses. Com o passar do tempo, arrefeceram, mas ainda mantém a esperança de que ela apareça, inopinada e linda. A mansão foi vendida e vendida e de novo vendida. Muitos vieram, se foram e, invariavelmente, contemplaram as entrelaçadas roseiras irmãs e sentiram seu perfume. Ainda que por instantes, sentiram-se feios, sujos, efêmeros, tristes, almas em decomposição. Húmus humanos.

Carlos Cruz - 30/07/2009

Nenhum comentário: