quinta-feira, 21 de junho de 2018

Crônicas Policiais III - os cavacos do ofício às vezes entram embaixo da unha e fazem doer




o cara acabou de perder o pai, atropelado por um caminhão. está ali, na DP, porque, na qualidade de filho, pode fornecer dados acerca da vítima e agilizar sua qualificação e conclusão das formalidades.


embora não tenha presenciado o acidente, o colega pede para ouví-lo como testemunha circunstancial. faço a busca de qualificado no sistema e tenho uma surpresa - desagradável para mim, muito desagradável para ele: o cara tem dois mandados de prisão pendentes por inadimplemento de pensão alimentícia.


solto um "puta que pariu!" e peço desculpas à moça no balcão que aguarda para ser atendida. o cara acabou de perder o pai e não vai poder velá-lo nem enterrá-lo nem dar o último adeus. a transferência é inevitável, ponho-me no lugar dele e penso - impossível não pensar - em prevaricar.


Art. 319 do C. P. - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.



o pensamento se esvai. "você é um agente do Estado, Carlos Cruz, agente da repressão, polícia, e polícia existe pra ajudar alguns e foder os demais. se queria ser humano, demasiado humano, porque não fez concurso pra área da saúde ou assistência social?"


não, não posso prevaricar e, ainda que quisesse, isso seria pedir pra me ferrar: já consultei o cara no sistema e isso gera um 'log' alcaguetador. verifico a listagem do plantão judiciário. "caralho!" - peço novas desculpas à jovem, o plantão não é em Paraty nem em Angra dos Reis, é na Vara de Família de Barra do Piraí, ali no fórum ao lado da DP, mesma vara de onde provieram os mandados de prisão.


dou a má notícia ao cabra, torcendo pra ele não chorar. ele faz cara de surpresa e dá as mesmas desculpas que todos na situação dele dão: mas isso aí tá errado, as pensões estão todas pagas, meu filho já é 'de maior', etc. redarguo: ótimo, então vai ser fácil resolver. me dá o número de telefone do seu advogado, rápido. ligo, explico o caso, chamando a atenção para a questão do plantão judiciário próximo e passo o telefone para o desditoso preso.


o advogado vem, pega as cópias dos mandados e vai. as horas passam, a noite cai, o advogado volta e diz que conforme seu cliente havia dito - vez ou outra acontece - ele está em dia com a pensão e quite com a Justiça: o alvará de soltura já foi expedido mas depende do sarq/polinter. o cara terá de dormir no xadrez. na manhã do dia seguinte, bem cedo, o oficial de justiça vem soltá-lo, enfim. o homem - até então firme como o Pico da Neblina - desaba em lágrimas e eu corro pro banheiro pra não fazer o mesmo. homem que é homem, polícia que é polícia, não choram.


depois, vêm as novas ocorrências de sempre, as mesmas vítimas, os mesmos presos, as mesmas queixas e esqueço o caso do prisioneiro azarado.

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